Chão de histórias

Nesta obra de estreia de Maria Valéria Rezende, o narrador é o chão. É ele quem vai contar as histórias dos moradores de Farinhada, a fictícia cidade do Nordeste, palco de tramas de amor, vingança, luta e sofrimento. Vasto mundo reúne 18 narrativas entrelaçadas através de seus personagens, ora protagonistas, ora coadjuvantes.

A primeira história, que dá título ao livro, tem como personagem principal o jovem Preá. Um simples faz-tudo que descobre o amor assim que uma moça do Rio de Janeiro chega à cidade:

“Preá não sabe que coisa é esta acontecendo dentro dele. Começou quando bateu com os olhos na moça. Uma queimação dentro do peito, uma nuvem na vista que esconde tudo o que não é a moça, os ouvidos moucos para tudo que não seja a voz dela. Nem com Edilson, o amigo quase irmão, Preá não quer conversa. Um sentimento que parece tristeza, mas não é. Pelo menos não é daquela tristeza de quando a avó morreu nem de quando o cachorro sumiu. Preá não sabe o que é”. (p.16)

Em “Sonhar é preciso”, é o amigo de Preá, Ramiro, o protagonista. Conhecido por dormir pofundamente, sem nunca ter sonhado, Ramiro tem sua vida mudada quando os sonhos passam a fazer parte de suas noites. Além de Preá, outros personagens são recorrentes, como por exemplo: Assis Tenório, o deputado latifundiário, e seu capanga Adroaldo; o professor com problema na perna e seu irmão jogador de futebol, e o padre beberrão Frank. Com doses de humor, poesia e sofrimento, a autora conta histórias de gente comum, embora acrescente tipos memoráveis como o justiceiro que tem medo de escuro e a freira ativista que vira líder das prostitutas:

“A vida de Aurora mudou outra vez da água para o vinho: a casinha de taipa numa ponta da rua, difícil de manter limpa, o belo hábito branco trocado por uma roupinha qualquer, para ficar igual a todo mundo de pobres, a zoada dos rádios, a meninada da vizinhança metendo-se pela porta adentro e a impossibilidade de o povo dizer seu nome alemão. Irmã Helga virava invariavelmente irmã Égua. As irmãs concordaram em que não podia ser: voltou a chamar-se Aurora dos Prazeres”. (p.128)

Há ainda tramas sobre amores impossíveis, no estilo de Romeu e Julieta, e sobre visitantes interplanetários:

“Nos dias seguintes, muita gente jurou ter visto coisas estranhas, mas nenhum sinal concreto da presença do extraterrestre foi encontrado. Farinhada, o povoado mais perto da famosa curva, encheu-se de jornalistas, equipes de televisão e curiosos. Só o pessoal da Nasa não apareceu. A pensão de dona Inácia fez bons lucros, as meninas namoraram os fotógrafos. Erlinda vendeu mais de seiscentas empadinhas na praça, padre Franz passou horas tomando cana e conversando de política com os jornalistas, enfim, uma semana de festa e distração. Passados sete dias sem sinal do viajante astral, a imprensa volúvel foi-se embora e as águas da rotina farinhense voltaram ao seu leito”. (p.64)

Dividido em três partes sob o mesmo título “A voz do chão” (diferenciado apenas pela enumeração), o livro, apesar de ter menos de 200 páginas, é o resultado de um acúmulo de experiências da autora. Não há como não enveredarmos por essa trama, e temos o chão por testemunha:

“Permaneço, não me posso mover daqui, mas distraio-me com os passos e sussurros, com os saltos e berros que me cruzam todos os dias e noites. Não me posso queixar de enfado, desconheço o tédio, mas aprendo a saudade e o espanto quando se relembram as lendas dos que foram para nunca mais, ou quem sabe um dia… A vida é o que se vê, o que se sonha, o que se narra, o que se lembra ou se esquece? A vida é para sempre?”. (p.111)

Vasto mundo

 

Vasto mundo
Maria Valéria Rezende
Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.
163 páginas

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