Para falar da vida, Saramago conta com a morte

O que aconteceria se a morte deixasse de matar? Essa pergunta foi o ponto de partida do livro As intermitências da morte, segundo revelou seu autor José Saramago, em algumas entrevistas na época do seu lançamento. E se a releitura de Os cadernos de Malte Laurids Brigge, de Rainer Maria Rilke, suscitou-lhe essa questão inicial; o título – que durante a fase de escrita do livro foi chamado provisoriamente de “O sorriso da morte” – teve inspiração nas intermitências do amor, tratadas por Marcel Proust em seu clássico Em busca do tempo perdido.

Mas, enfim, a humanidade realizou o sonho da vida eterna ou a morte sorriu no final? Diria que todos já sabemos a resposta, entretanto, diante de um escritor como Saramago, o mais provável é que estejamos enganados. Considerando que a única certeza que temos na vida é da morte, nem isso teremos mais, pois o autor acaba com nossa confiança logo na primeira frase:

“No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenómeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e nocturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada”. (p. 11)

É sobre esse inusitado acontecimento que a trama é construída. Em um país monárquico sem nome, no primeiro dia do ano, a morte não foi mais vista, o que levou a população a comemorar – hasteando a bandeira do país nas janelas das casas – a conquista daquilo que a humanidade sempre desejou: a imortalidade.

No entanto, o que a princípio parecia um grande trunfo, pouco a pouco se revelou um desastre. Saramago apresenta um breve panorama do que ocorreria se as pessoas passassem a viver eternamente. Cabe lembrar que elas continuam envelhecendo, adoecendo e sofrendo acidentes, com a diferença de que agora, por mais que padeçam, foram impedidas de descansar em paz. Hospitais e casas de repouso lotadas, seguradoras e funerárias quebrando, famílias tendo que cuidar de seus doentes cada vez mais agonizantes, a igreja perdendo fiéis, pois com a vida eterna acontecendo na terra, quem precisaria de salvação? O governo preocupado com o pagamento das pensões para tantos e por toda a vida; o cenário caótico é resumido no desabafo do primeiro-ministro: “se não voltarmos a morrer novamente, não teremos futuro”.

Após alguns meses, a morte finalmente se pronuncia, em rede nacional, por meio de uma carta enviada a um canal de televisão. Além de explicar as razões para o seu sumiço, ela apresenta as novas regras para as futuras mortes, o que para mim foi uma das partes mais engraçadas do livro, especialmente quando os diretores decidem pedir a um grafólogo e a um gramático para fazer a análise da carta. O primeiro diz se tratar, sem dúvida, da caligrafia de uma serial killer; enquanto o último dizia que a morte não dominava “sequer os primeiros rudimentos da arte de escrever”:  

“Logo a caligrafia, disse ele, é estranhamente irregular, parece que se reuniram ali todos os modos conhecidos, possíveis e aberrantes de traçar as letras do alfabeto latino, como se cada uma tivesse sido escrita por uma pessoa diferente, mas isso ainda se perdoaria, ainda poderia ser tomado como defeito menor à vista da sintaxe caótica, da ausência de pontos finais, do não uso de parêntesis absolutamente necessários, da eliminação obsessiva dos parágrafos, da virgulação aos saltinhos e, pecado sem perdão, da intencional e quase diabólica abolição da letra maiúscula, que, imagine-se, chega a ser omitida na própria assinatura da carta e substituída pela minúscula correspondente. Uma vergonha, uma provocação, continuava o gramático”. (p. 111)

O estilo de escrita da morte, não por mero acaso, é o mesmo estilo inconfundível de Saramago. Uma brincadeira do autor que, direcionando a crítica à sua própria forma de escrever, devolve-a à fonte. Em uma entrevista, Saramago admitiu ter escrito o livro com alegria. “É uma alegria que vem não só pelo tom irônico, sarcástico às vezes, divertido, mas também porque é como se sentisse superior à morte dizendo-lhe ‘Estou a brincar contigo’”. (As palavras de Saramago, p. 315)

A história pode ser dividida em três partes: na primeira o autor aproveita o desaparecimento da morte para falar sobre os problemas da sociedade contemporânea: manobras políticas, anciãos esquecidos nas casas de repouso, egoísmo e interesses; na segunda, a morte tenta colocar as coisas em ordem novamente; na terceira, a morte assume a forma humana e se relaciona com uma pessoa.

De acordo com o autor, “Não são três histórias, é como se a visão panorâmica se fosse afunilando mas conduz a três ritmos narrativos, que o leitor percebe no ritmo da frase e na velocidade com que pode ler. No fundo há alguma coisa de musical, como se começasse por um Allegro, passasse a um Andante e terminasse num Largo. E como o protagonista é um violoncelista, talvez o livro tenha realmente uma forte composição musical”. (As palavras de Saramago, p. 314)

Este não é um livro com aprofundamento dos personagens; a que talvez mais se encaminhe para tal é a morte, mas que por sua própria natureza, misteriosa para nós humanos, vai se tornar ainda assim indecifrável. Ao assumir a forma de uma mulher, para conseguir pôr fim à vida do violoncelista, a morte acaba se humanizando e se apaixona:

“A morte, porém, que por dever de ofício tantas outras músicas havia escutado, com particular relevância para a marcha fúnebre do mesmo chopin ou para o adagio assai da terceira sinfonia de beethoven, teve pela primeira vez na sua longuíssima vida a percepção do que poderá chegar a ser uma perfeita convizinhança entre o que se diz e o modo por que está dizendo. Importava-lhe pouco que aquele fosse o retrato musical do violoncelista, o mais provável é que as alegadas parecenças, tanto as efectivas como as imaginadas, as tivesse ele fabricado na sua cabeça, o que à morte impressionava era ter-lhe parecido ouvir naqueles cinquenta e oito segundos de música uma transposição rítmica e melódica de toda e qualquer vida humana, corrente ou extraordinária, pela sua trágica brevidade, pela sua intensidade desesperada, e também por causa daquele acorde final que era como um ponto de suspensão deixado no ar, no vago, em qualquer parte, como se, irremediavelmente, alguma cousa ainda tivesse ficado por dizer”. (p. 171)

Neste ano, em que comemoraremos 100 anos do nascimento de Saramago, poderíamos dizer que a morte lhe sorriu. Mas se levarmos em conta que as palavras do autor continuam vivas entre nós, o mais certo seria dizer é que Saramago foi quem riu por último.

As intermitências da morte
José Saramago
São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
208 páginas

As palavras de Saramago
José Saramago em sus palavras
Organização e seleção de Fernando Gómez Aguilera
São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
480 páginas

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