Parecia ficção, só que não

A história contada em Pantaleão e as visitadoras é baseada em fatos reais. Essa revelação do escritor peruano Mario Vargas Llosa aparece no prólogo do livro e diz respeito a duas viagens feitas por ele à Amazônia, quando soube de um serviço de prostituição organizado pelo exército peruano. Segundo o autor, ele até tentou contar isso de maneira séria, mas percebeu que seria impossível.

O recém-nomeado capitão Pantaleão Pantoja assume o posto com a missão de criar um bordel itinerante para os soldados das Forças Armadas peruanas, pois estes estão violentando as mulheres locais:

“Há estupros a granel e os tribunais já nem conseguem julgar tanto safado. Toda a Amazônia está em alvoroço”. (Posição 101)

Mesmo distante do que intencionava para sua carreira militar, Pantoja, como devotado oficial que sempre fora, reúne seus conhecimentos e habilidades (reconhecidas em missões anteriores) para dar início ao projeto. Sem poder vinculá-lo ao Exército, Pantoja é proibido de usar seu uniforme e deve apresentar-se daí por diante como civil, um comerciante responsável pelo Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteira e Afins (SVGPFA).

O centro logístico da SVGPFA é instalado às margens do rio Itaya, em Iquitos, para onde Pantaleão muda-se com sua mãe, Dona Leonor, e sua esposa Pochita. Para manter a farsa, porém, eles também não puderam ir para a vila militar, o que causou indignação nas mulheres da casa, que tiveram que se contentar com a explicação de que agora Pantojita é do Serviço de Inteligência e está em uma missão secreta.

Com o intuito de recrutar as visitadoras, Pantaleão passa a sair à noite frequentando bares e prostíbulos. Em suas andanças, ele conhece a dona da casa de tolerância em Nanay, Leonor Curinchila, apelidada Chuchupe; o amante dela conhecido por Chupito e China Porfírio, uma espécie de cafetão, que arranjava prostitutas para seus clientes em bordéis e entre as chamadas lavadeiras (que atendiam em domicílio). Com a ajuda desses três personagens,  Pantoja monta seu grupo de visitadoras, inicialmente com quatro mulheres.

Paralelamente, surge em Iquitos um líder religioso conhecido como Irmão Francisco, fundador da Irmandade da Arca que conquistava mais seguidores a cada dia:

“Haviam-se apossado dele uns seguidores do Irmão Francisco, sujeito de origem estrangeira, fundador de uma nova religião e suposto milagreiro, que percorre a pé e de balsa a Amazônia brasileira, colombiana, equatoriana e peruana, erguendo cruzes nas localidades por onde passa e fazendo-se crucificar, para pregar nessa extravagante posição, seja em português, espanhol ou nas línguas dos índios chunchos”. (Posição 453)

Determinado, Pantoja vê seu negócio prosperar. O número de visitadoras cresce e acaba despertando a inveja de oficiais superiores e de civis, que querem usufruir dos serviços destinados aos soldados, especialmente após a entrada da Brasileira, uma bela morena de origem peruana, que ganhara o apelido por ter vivido em Manaus por um tempo.

Além disso, outras prostitutas também querem fazer parte do SVGPFA, cuja notoriedade lhe rendeu uma nova denominação: Pantolândia, inspirada em seu idealizador. No entanto, a morte de uma das visitadoras, atribuída inicialmente à Irmandade da Arca, a oposição de figuras importantes do Exército e a hostilidade da população põem em risco o negócio.

Vários narradores alternam-se entre cartas, documentos militares, noticiários e jornais (a esposa de Pantoja, o jornalista Sinchi e vários oficiais). Há ainda partes em que os diálogos são intercalados, com as cenas mudando o tempo todo como em um filme. Em uma delas, China Porfírio conversa com Chuchupe e na sequência temos Pochita dialogando com Dona Leonor:

“— Eu sei pol que você duvida, mulhel de gelo — bate no peito o China Porfirio. — Polque falta a você o que sobla a Chupón e a mim: colação.

— Coitada, estou com pena da senhora, dona Leonor — se estremece Pochita. — Se eu, que só sei do crime por ouvir e ler, ainda tenho pesadelos e acordo pensando que estão crucificando o cadetinho, a senhora deve estar meio transtornada, depois de ver a criança com seus próprios olhos. Ai, dona Leonor, falo disso e fico toda arrepiada, juro.

— Essa Olguinha é um caso sério, passou a vida fazendo estragos — filosofa Chuchupe. — E assim que volta de Manaus é surpreendida trabalhando em plena matinê do cinema Bolognesi com um tenente da Guarda Civil. As coisas que não deve ter feito no Brasil!” (Posição 1478)

A narrativa tem toques de humor e ironia para mostrar a realidade social do Peru da época (o livro foi publicado em 1974), especialmente da Amazônia peruana. E uma coisa é certa: a realidade tem se mostrado tão surpreendente quanto a ficção.

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Pantaleão e as visitadoras
Pantaleón y las visitadoras
Mario Vargas Llosa
Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
E-book: 201 páginas

A resposta masculina para Ferrante?

Foi essa a dúvida que me levou a Laços, do escritor italiano Domenico Starnone. Publicado em 2014, eu ouvira comentários de que o livro era o contraponto masculino para o arrebatador Dias de abandono (2002), da Elena Ferrante (já tem post aqui). O tema da esposa abandonada, porém, não era a única coisa que ligava o autor à sua conterrânea; havia ainda o fato de ser casado com Anita Raja, tradutora que teve seu nome envolvido nas especulações sobre a real identidade de Ferrante. Parecia que os laços entre as duas obras eram mais fortes do que eu imaginara…

O enredo gira em torno de Aldo Minori, que conhecemos por diferentes vozes (dele mesmo, da esposa e da filha), e as consequências advindas com sua decisão de abandonar a família por causa de outra mulher. Enquanto na obra de Ferrante é somente Olga que relata seu drama em primeira pessoa, em Laços há três narradores responsáveis por cada uma das três partes que compõem o livro.

A narrativa da primeira parte é na forma de cartas, escritas pela esposa abandonada para o marido durante o período da separação (de 1974 a 1978). Sabemos pelo seu relato que Aldo, então com 34 anos de idade, deixara-a com os filhos Sandro e Anna (de 9 e 5 anos, respectivamente) em Nápoles, para viver em Roma com Lídia, uma estudante de 19 anos que ele conhecera enquanto lecionava na universidade. A trama começa com a tentativa de Vanda de entender o que acontecera ao marido e seu desespero para ter a família de volta:

“Conheço você, sei que é uma boa pessoa. Mas, por favor, assim que ler esta carta, volte para casa. Ou, se ainda não se sentir à vontade, me escreva explicando o que está acontecendo. Vou tentar entender, prometo. Já está claro para mim que você precisa de mais liberdade, e é justo, eu e seus filhos vamos tentar sobrecarregá-lo o mínimo possível”. (Posição 144)

Vanda, assim como a protagonista de Dias de abandono, passa pelas várias fases da separação, só que de maneira menos clara e intensa. A busca pelo motivo, a revolta, as chantagens emocionais, a vingança, a depressão estão todas lá, até finalmente chegar à aceitação:

“Nossa separação foi de fato sacramentada pelo registro civil e pela declaração de custódia que você assinou. Não vejo urgência para outras iniciativas.
Recebo pontualmente o dinheito que você me manda, embora eu nunca tenha pedido nada, nem para mim nem para meus filhos”. (Posição 312)

 A segunda parte (a mais extensa) é narrada pelo próprio Aldo e começa décadas depois do momento em que ele deixara a família. Aos 72 anos, Aldo está prestes a sair de férias em uma viagem à praia com Vanda, com quem convive há 52 anos. Na mesma casa, vive ainda o gato Labes. Os filhos têm suas próprias vidas: Sandro teve vários relacionamentos que resultaram em quatro filhos e Anna não se casou. Ambos também foram viajar, o primeiro para visitar os sogros na Provença e a outra para as ilhas gregas.

No entanto, quando retorna à casa, o casal percebe que tudo está fora do lugar e o gato desaparecera. Abalados, Aldo sugere que Vanda descanse enquanto ele arruma a bagunça. É durante esse processo que ele revê parte da sua vida: alguns escritos da época em que era um autor televisivo de sucesso, livros com marcações que já não lhe diziam nada, fotos que lhe lembraram a época em que conhecera Vanda e por fim, as cartas que ela escrevera quando se separaram:

“As cartas conservavam os vestígios de uma dor tão forte que, se liberada, poderia atravessar o cômodo, se espalhar pela sala, irromper além das portas fechadas e voltar a se apossar de Vanda, sacudindo-a e arrancando-a do sono, impelindo-a a gritar ou cantar até explodir”. (Posição 745)

Temendo ressucitar os fantasmas do passado, Aldo se livra das cartas para que Vanda não as veja. Aproveita também para verificar se o cubo azul que comprara em Praga permanece em seu escritório, pois em seu interior, ele escondia alguns de seus segredos.

Há várias perguntas que o autor lança ao longo da narrativa: o que havia dentro do cubo? quem invadiu a casa? onde fora parar o gato? A terceira parte, narrada pela filha do casal procura responder todas as questões e entender o relacionamento dos pais. E percebemos que mesmo com o retorno de Aldo, as consequências daquele ato influenciaram a vida de todos e permaneceram até o presente.

O livro fala sobre família, casamento, separação, traumas, amor, solidão e a passagem do tempo. É uma prosa leve e de leitura rápida, mas que não tem o efeito dilacerante da escrita de Ferrante. Talvez porque a protagonista de Dias de abandono não tivera medo de se expor, de revelar sua insanidade e sua fragilidade, o que não ocorreu com Aldo. Ele tem dificuldade de admitir seus sentimentos: desde o amor por Lídia até de uma certa culpa, que nunca é assumida, colocando a traição como fruto da época de liberação sexual e questionamento das tradições:

“De modo que em pouco tempo, embora eu tivesse uma forte relação com minha mulher e as duas crianças, sofri o fascínio de modos de vida que rompiam programaticamente todos os laços tradicionais.”  (Posição 777)

Ou:

“Eu tinha ficado com outra, eu estava com outra, eu estou com outra eram frases que exprimiam liberdade, e não culpa”. (Posição 788)

Aldo nunca conseguiu romper os laços, só conseguiu afrouxá-los, mas será que isso seria suficiente para segurar os sapatos enquanto caminhava? A capa da edição americana (veja abaixo) mostra a possível dificuldade.

Laços

 

Laços
Lacci
Domenico Starnone
São Paulo: Todavia, 2017.
137 páginas (E-book)

 

 

Ties

 

Ties
Europa Editions, 2017.