Nada mais propício para esta época do ano do que fazer um balanço das leituras realizadas. 2021 foi para mim um ano de ótimos livros e dentre os que mais se destacaram estão os de autores e autoras brasileiros. Alguns deles se revelaram uma bela surpresa e outros, que eu já conhecia, mostraram novas qualidades ou confirmaram minha preferência. Conheça abaixo os livros nacionais que marcaram este meu ano.
1. Torto Arado
Itamar Vieira Junior
São Paulo: Todavia, 2019.
264 páginas
Difícil encontrar alguém que não tenha incluído este livro entre as melhores leituras do ano. Vencedor dos prêmios Jabuti e Oceanos, ele traz a história das duas irmãs, Belonísia e Bibiana, que após um acontecimento trágico têm seus destinos entrelaçados. A narrativa é construída de forma brilhante, revelando-se aos poucos e ganhando não só a atenção, mas o coração do leitor. Paralelamente ao desenvolvimento das irmãs, o autor traça um retrato do Brasil esquecido por quem vive nas metrópoles, mas certamente presente em várias regiões do país ainda hoje. Questões como a exploração dos trabalhadores rurais, o direito à propriedade, os quilombolas, a violência contra as mulheres aparecem na obra, trazendo muitas reflexões e ensinamentos. Em uma passagem, o pai das garotas diz: “Se o ar não se movimenta, não tem vento, se a gente não se movimenta, não tem vida”. (p. 99). Só posso dizer que Torto arado pode até começar como uma brisa, mas revolve dentro de nós como uma ventania.
2. Se deus me chamar não vou
Mariana Salomão Carrara
São Paulo: Editora Nós, 2019.
160 páginas
Ao receber um elogio da professora, que diz que se ela continuasse praticando um dia seria escritora, Maria Carmem Rosário decide fazê-lo, escrevendo sobre os acontecimentos daquele ano, entre seus 11 e 12 anos – ao qual ela se refere como “a pior idade do universo”. Assim, acompanhamos o crescimento de Maria Carmem, tanto como escritora, com suas dúvidas sobre finais de capítulos e vírgulas, quanto como a garota que tenta descobrir seu lugar no mundo, refletindo sobre temas como morte, velhice, amor, Deus, família e principalmente solidão:
“Talvez seja assim com os velhinhos também, como os capítulos. Ninguém precisa decidir que certa parte da vida acabou. O corpo sente sozinho que não dá mais pra andar sem ajuda de alguma coisa que vendem na loja de velhos, e então, naturalmente, alguém vai lá e compra, e começamos um novo capítulo da vida. Vai ver é assim, e nem assusta tanto”. (p. 24)
Apesar de narrado por uma criança e com momentos de humor e leveza, os temas tratados no livro são angustiantes. Maria Carmem é uma garota que se sente excluída, tanto na escola – onde sofre violência física e emocional por “ter muito tamanho” – quanto na sua casa, já que na ótima relação dos pais não sobra espaço para ela. Sua participação na família praticamente se limita à ajuda na “loja de velhos” (de produtos geriátricos) pertencente aos seus pais. Em uma triste cena, ela diz que a avó e ela não faziam companhia uma à outra, faziam solidão. Mesmo que alguns pontos da trama não tenham funcionado para mim, a história de Maria Carmem é tocante e não há como não torcer para que ela consiga fazer sua sonhada entrada triunfal ao som de “Livin’ la vida loca”.
3. Ciranda de pedra
Lygia Fagundes Telles
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
224 páginas
Virgínia é a filha caçula de uma família rica que após a separação dos pais, Laura e Natércio, vai morar com a mãe e o padrasto Daniel, passando a viver de forma mais modesta. No entanto, percebemos que há algo além da condição financeira por trás do distanciamento entre ela e as irmãs, Bruna e Otávia, e da rejeição do pai. A primeira parte do livro mostra Virgínia ainda criança, tentando fazer parte do grupo formado pelas irmãs e pelos vizinhos, Afonso, Letícia e Conrado, representados pela ciranda de anões de pedra do jardim; na segunda, Virgínia, já crescida, vai descobrindo as fraquezas e os segredos de todos, além de sua própria identidade:
“— Assim é melhor. Então você ainda gosta dele? Terá que esquecer, Virgínia. Amar a pessoa errada não é das melhores coisas que nos podem acontecer e acontece com tanta frequência. Dante se esqueceu desse círculo no seu inferno, o dos rejeitados”. (p. 120)
Escrito em 1954, esse primeiro romance de Lygia Fagundes Telles aborda temas polêmicos para a época – loucura, suicídio, homossexualidade e outros que não vou mencionar, pois seriam spoilers. O sucesso desse drama familiar fez com que fosse adaptado duas vezes, em 1981 e em 2008, para a televisão, só que com várias diferenças em relação à obra original.
4. Meus desacontecimentos: a história da minha vida com as palavras
Eliane Brum
Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2017.
128 páginas
Com uma escrita forte, sincera, rica em imagens, sofrimento e lirismo, Eliane Brum conta aqueles que são os desacontecimentos de sua vida. Mas não só isso, em suas mãos as palavras deixam de ser somente um meio de transmitir uma mensagem para se transformar em sua própria existência:
“A palavra é o outro corpo que habito. Não sei se existe vida após a morte. Desconfio que não. Sei que para mim não existe vida fora da palavra escrita. Só sei ser – por escrito. No meu nome carrego o que sou e o que não sou, sustento o que busco e não alcanço, assim como o vazio entre as letras, o incapturável em mim. O indizível que também me constitui”. (p. 73)
Se as palavras se tornaram um meio de ela se sentir viva e de ser notada, ao mesmo tempo, com elas a autora dá vida a outras pessoas, comuns demais para serem percebidas na sociedade, mas cuja importância Brum revela e transforma em um grande acontecimento.
5. São Bernardo
Graciliano Ramos
Rio de Janeiro: BestBolso, 2011. Livro vira-vira
154 páginas
Quando peguei este livro, não imaginei que ele se tornaria um dos meus favoritos do ano. A escrita de Graciliano Ramos é enxuta, precisa e envolvente e neste livro o autor mostra um pouco de como ela se desenvolve, por meio do seu narrador, Paulo Honório.
“ Tínhamos desperdiçado tantas palavras! […]
O que eu dizia era simples, direto e procurava debalde em minha mulher concisão e clareza. Usar aquele vocabulário, vasto, cheio de ciladas, não me seria possível. E se ela tentava empregar a minha linguagem resumida, matuta, as expressões mais inofensivas e concretas eram para mim semelhantes às cobras: faziam voltas, picavam e tinham significação venenosa”. (p. 119)
No momento em que decide escrever suas memórias, Paulo Honório está com 50 anos, e seu livro, além do caráter prático de gerar renda, servirá para revisitar alguns fatos ocorridos e tentar compreendê-los, especialmente aqueles que marcaram sua relação com a esposa Madalena.
Publicado em 1934, S. Bernardo é o segundo romance de Graciliano Ramos, que apresenta forte crítica social e mostra os dramas do povo nordestino por meio de seu protagonista capitalista, violento e possessivo. Foi adaptado para o cinema, no filme homônimo dirigido por Leon Hirszman e protagonizado por Othon Bastos, que em 2015 entrou para a lista de 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos, eleitos pela Abraccine.
6. Meio intelectual, meio de esquerda
Antonio Prata
São Paulo: Editora 34, 2010.
176 páginas
Este livro é uma seleção de crônicas publicadas – em sua maioria, no jornal O Estado de S.Paulo, de 2004 a 2010 –, além de uma evidência da razão pela qual Antonio Prata é considerado um dos melhores cronistas da atualidade. Sob seu olhar atento, nada passa despercebido: da mudança climática do planeta à barriga do Ronaldo fenômeno; das diferenças linguísticas entre paulistas e cariocas à presença de metano em Marte; do convívio entre vizinhos em prédios à aleatoriedade das músicas do iPod, provocando no leitor novas percepções, reflexões e muitas risadas.
Em “Ossos do ofício”, o autor fala sobre a compulsão por trocadilhos dos donos de petshops: AUqueMIA, Oh my DOG!, AmiCão, só para citar alguns que talvez você até tenha visto pelas ruas da cidade. Mas a constatação termina com a hilária contribuição do autor:
“E já que entramos no terreno dos trocadilhos bilíngues, gostaria de expor um, de minha lavra. Surgiu quando eu descobri que jogo de palavras em inglês é pun, e pode ajudar a todos que, como eu, são repreendidos ao soltarem algo como ‘Wim Wenders e aprendenders’, numa mesa de bar. Basta encarar seus detratores e dizer, com falso arrependimento: ‘Desculpa, pessoal, soltei um pun’”. (p.25)
7. Manuelzão e Miguilim: corpo de baile
João Guimarães Rosa
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
210 páginas
Se a leitura de certos autores por si só é intimidante, o que dirá escrever sobre eles? No entanto, achei que seria injusto não falar aqui sobre o livro que me arrebatou neste ano, ou melhor dizendo, sobre o garoto que ganhou um lugar no meu coração: Miguilim. O título do livro, Manuelzão e Miguilim, refere-se aos protagonistas de duas das sete novelas que fazem parte da obra Corpo de Baile, composta ainda por No Urubuquaquá, no Pinhém e por Noites do sertão.
A novela “Uma estória de amor” fala sobre Manuelzão, vaqueiro de prestígio e encarregado da fazenda Samarra. A trama se desenvolve durante a festa de inauguração da capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro – construída para cumprir a promessa que Manuelzão fizera à falecida mãe. É nesse ambiente festivo que se encontram reunidos desde fazendeiros ricos a pessoas marginalizadas; o sagrado e o profano; o real e o imaginário; o passado (nas reminiscências de Manuelzão) e o presente.
Se Manuelzão é o registro da maturidade, na novela “Campo geral” o tema gira em torno da infância. Acompanhamos a descoberta do mundo pelos olhos de um garoto de oito anos, Miguilim. A natureza, os animais, as pessoas, nada fica de fora da percepção de Miguilim em seu processo de aprendizagem, que carrega lições duras sobre morte, injustiças e tristezas. A forma como Guimarães Rosa conta a história é cativante, capaz de nos fazer sorrir e chorar ao longo dessas poucas páginas. Escolhi a passagem abaixo dentre as várias que mesclam simplicidade e poesia:
“O Dito dizia que o certo era a gente estar sempre brabo de alegre, alegre por dentro, mesmo com tudo de ruim que acontecesse, alegre nas profundezas. Podia? Alegre era a gente viver devagarinho, miudinho, não se importando demais com coisa nenhuma”. (p.119)
Este é o último post de 2021 e aproveito para agradecer a todos que estiveram aqui comigo e desejar-lhes um novo ano com tudo de melhor.
Agradeço também aos clubes de leitura que me fizeram descobrir alguns dos livros presentes nesta seleção e à minha amiga Akemi, que me presenteou com o incrível livro do Graciliano Ramos.
Que 2022 venha com muitas alegrias e leituras!
Abraços,
Patrícia.