Reajustando a rota

Assim que entramos em um novo ano sempre vem a ideia de estarmos diante de inúmeras possibilidades, com energia e esperança renovadas para realizar sonhos, cumprir objetivos e ter um ano melhor. Só que muitas vezes, precisamos reajustar a rota para não repetirmos o que não deu certo e conseguirmos chegar onde queremos.

No caso das minhas metas literárias, 2023 foi um ano em que li menos do que eu gostaria. Consegui cumprir meus projetos literários, é verdade, especialmente aqueles que compartilhei com amigas, mas ainda assim, queria ter diminuído um pouco mais a pilha dos não lidos.

Por isso, neste ano, decidi voltar aos desafios literários para conseguir tirar da estante alguns autores que ainda não consegui ler. Somente três deles, Henry James, Maurício de Sousa (no caso dos gibis) e Camões eu já li, mas os demais serão inéditos para mim.

Acredito que além de expandir o repertório de leituras, o desafio literário serve como uma chance de conhecermos novos autores ou explorarmos gêneros literários que não fazem parte do nosso cotidiano. Para 2024, escolhi o desafio literário do clube de leitura “O narrador”. São 12 livros, um para cada mês do ano, listados abaixo com as minhas escolhas.

  1. Um calhamaço
    As correções – Jonathan Franzen
    Aqui vale dizer que para mim qualquer livro com mais de 500 páginas já entra nessa categoria. Esse do Franzen tem 586 páginas.
  2. Um clássico, pelo menos
    O romance de Genji 1 – Murasaki Shikibu
    Considerado o primeiro romance japonês.
  3. Uma epopeia
    Os lusíadas – Luís de Camões
  4. Um livro em outro idioma
    El club Dumas – Arturo Pérez-Reverte
  5. Um livro de poesia
    O livro das semelhanças – Ana Martins Marques
  6. Um livro de contos
    Até o último fantasma – Henry James
  7. Uma obra da literatura oriental
    O romance de Genji 2 – Murasaki Shikibu
  8. Uma graphic novel
    Solitário – Chabouté
  9. Uma peça de teatro
    Seis personagens à procura de autor –  Luigi Pirandello
  10. Um livro encalhado na estante
    O mestre e Margarida – Mikhail Bulgákov
  11. Uma biografia
    A história que não está no gibi – Mauricio de Sousa
  12. Um livro que te intimida
    Um defeito de cor – Ana Maria Gonçalves

Para quem quiser participar do desafio, o Instagram do clube é  @onarradorclubedeleitura

Há exatos sete anos, comecei este blog, que continua sendo um lugar em que tenho prazer de encontrar outros leitores e amigos. Agradeço a cada um que tem me acompanhado seja nos longos trajetos ou durante um pequeno percurso. A companhia é sempre bem-vinda.

Desejo que 2024 leve todos aos destinos sonhados e que a jornada seja leve, enriquecedora e prazerosa. Boas leituras!

Ser imperfeito: uma questão de humanidade

De uns tempos para cá, tenho participado de alguns encontros literários mesmo sem ter lido a obra a ser discutida, com o intuito de conhecer novos autores. Uma das surpresas deste ano foi o escritor paulista, Rafael Gallo, que participou de um evento para falar sobre seu livro, Dor fantasma, vencedor do Prêmio Literário José Saramago de 2022.

Entusiasmada com a forma como o autor defendeu suas escolhas e com os comentários do público, coloquei Gallo como um fura-fila da minha lista de leituras de 2023. E se, no fim do ano, algo da lista ficar de fora, sei que o lugar foi ocupado com honra, pois o livro manteve as minhas altas expectativas.

A história começa em um momento de glória de Rômulo Castelo – prestigiado pianista, além de professor catedrático de piano em uma universidade –, naquela que será anunciada pelo narrador como a sua última apresentação:

“No auditório do teatro, pouco ocupado, a maioria clama por mais; nunca haverá mais. Sua carreira – sua vida – como concertista acaba aqui, nesse instante. E esse instante é já pretérito, como todo momento presente se esvai imediatamente ao passado. Rômulo Castelo, um dos maiores intérpretes de Liszt, hoje deixa de sê-lo. Após a última nota de Funerais, já volatizada, nenhuma outra executada por ele será ouvida em público”. (p. 14)

Sabemos que haverá uma tragédia que deve pôr fim ao sonho de Rômulo: executar ao piano Rondeau Fantastique, que só havia sido tocada pelo próprio Liszt, e torná-la conhecida do grande público durante a sua turnê pela Europa, programada para ter início em alguns meses. Só nos resta então esperar para ver o que e como ocorrerá o fato. Aliás, Gallo consegue manter o suspense até o final do livro, à medida que outras circunstâncias vão entrando na história, seja no que diz respeito ao tratamento médico, à turnê, ao que vai acontecer após um incidente na universidade etc.

Filho do conceituado maestro, George Castelo, Rômulo desde criança herda a paixão do pai pela música. Aprendeu ainda cedo a tocar piano, assim como a ter a disciplina e a determinação necessárias para se alcançar a perfeição na interpretação das mais difíceis peças musicais. Como dizia o pai: “o zelo exige rigor”, frase que Rômulo repetia sempre e que parecia servir não só para orientá-lo, mas para assombrá-lo.

Casado com Marisa, que era secretária na época em que ele lecionava no conservatório, Rômulo teve um filho a quem deu o nome do seu compositor favorito. No entanto, se tinha a esperança de que o nome o levasse ao mesmo caminho musical, Franzinho mostrou-se uma decepção para o pai, pois nascera com paralisia cerebral, enfraquecendo o que poderia ser a última esperança do elo familiar.

Rômulo passa os dias em sua sala de estudo, uma espécie de caixa-forte no meio do seu apartamento, cujo isolamento não permite que nenhum som entre ou saia, assim como ninguém, além dele. Não há nada mais importante em sua vida do que a música:

“Ele continua. É preciso tornar-se um só com o instrumento; manter atada, em trama tesa, as redes de neurônios e a fiação dos tendões e as linhas da melodia. Mais do que isso, é preciso ser a música. Nada a existir além ou aquém do compromisso total com sua arte, assim como não é possível existir fora do eu, pensar sem ser através do pensamento do eu, fazer-se presente fora da presença do eu. Ser a música. Tudo o que é ordinário, tudo o que representa desvio, deve desaparecer nesse caminho reto da excelência. É preciso a perfeição: tomá-la entre os próprios dedos. E controlá-la”. (p. 12)

Como uma máquina, que segue a marcação de um metrônomo, Rômulo repete os mesmos movimentos dia após dia e sua obsessão pela perfeição começa a interferir não só no relacionamento com sua família, mas com os alunos e os demais professores da universidade. Sem tolerar erros, Rômulo é arrogante, intransigente e por vezes violento com as pessoas. Após o acidente, seu comportamento piora, fazendo-o cometer atrocidades cada vez mais absurdas.  

Rômulo dificilmente despertará a simpatia do leitor, mesmo que imaginemos a dor e a frustração de alguém que vê o trabalho de uma vida se perder. No entanto, em algumas ocasiões, percebemos como uma pessoa que vive com a exigência da perfeição é também uma vítima, assim como aqueles que convivem com ela, por causa do inferno que ela cria. Na cena em que visita George, que está em uma casa de repouso, vemos a angústia de Rômulo ao constatar que seu desejo de tocar para o pai, antes que ele morra, a peça intocável de Liszt não ocorrerá. O que faz com que ele pense em mostrar o vídeo da mulher tocando Rondeau Fantastique, revelado pela ex-namorada, para sua tristeza:

“Não, pai, é preciso esperar. A perfeição exige rigor, tempo, preparo; a perfeição exige tudo. Contrariado, Rômulo tira o celular do bolso […] Busca Lorena por entre as mensagens. Se o pai vir o Rondeau Fantastique executado, talvez sinta a experiência como um bálsamo. Rômulo poderá dizer: ‘Sei que percebe as imperfeições, pai, mas eu tenho preparado a interpretação correta’. E se o pai não perceber as imperfeições, como não as nota na própria regência? E se essa pianista ocupar na aprovação mais elevada do maestro o lugar que deveria ser seu? Rômulo Castelo, prestes a ser o maior. Foi só um adiamento, pai, a turnê ainda acontecerá; a minha estreia, a peça intocável, a perfeição. Ainda acontecerá: ‘Pai…’, o filho chama”. (p. 175)

De forma breve, o autor toca ainda em assuntos como assédio moral, cultura do cancelamento, ética médica, preconceito e uso das redes sociais, mas sem dúvida a questão para pensarmos durante a leitura do livro é a busca obsessiva pela perfeição, tão presente no discurso capitalista sobre produtividade, alto desempenho e sucesso, que pode fazer com que as pessoas percam o respeito e a empatia pelos outros, esquecendo-se que não errar não é humano.

Formado em música, Rafael toca violão e piano, e trabalhou com música para audiovisual e cinema antes de começar a escrever. Dor fantasma é seu terceiro livro, e os anteriores também foram premiados: o livro de contos Reveillon e outros dias (2012) e Rebentar (2015) receberam o Prêmio Sesc de Literatura e Prêmio São Paulo de Literatura, respectivamente.

Dor fantasma
Rafael Gallo
Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2023.
352 páginas

Segue a playlist da editora com as músicas citadas no livro, incluindo a Rondeau Fantastique, executada pela pianista mencionada por Lorena.

Vale comemorar: blog, quadrinhos e novos projetos!

Hoje, 30 de janeiro, é comemorado o Dia do Quadrinho Nacional. Instituído em 1984, pela Associação dos Quadrinistas e Caricaturistas de São Paulo, a data foi escolhida após uma pesquisa em que ficou confirmada a publicação do primeiro quadrinho brasileiro. Isso ocorreu em 1869, quando As aventuras de Nhô-Quim ou Impressões de uma viagem à Corte, de Ângelo Agostini, passou a ocupar semanalmente as páginas da revista “Vida Fluminense”. Para marcar a data – que no meu calendário pessoal será também o início de um projeto que farei com uma amiga, o de ler uma graphic novel coreana –, decidi falar sobre um quadrinho nacional que é um dos meus favoritos: Daytripper, dos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá.

A dupla é reconhecida tanto nacional quanto internacionalmente, tendo recebido o primeiro Jabuti dado a uma HQ, em 2008, com O alienista, e o Prêmio Eisner, considerado o Oscar da categoria, com Daytripper, em 2011.

O enredo traz a história de Brás de Oliva Domingos, filho do renomado escritor Benedito de Oliva Domingos, que trabalha em um periódico escrevendo obituários e sonhando com uma carreira literária  assim como a de seu pai. Justamente no dia de seu aniversário, ele parece esquecido, pois o acontecimento mais importante se torna a homenagem que o pai dele receberá pelos 40 anos dedicados à literatura, em um evento de gala no Teatro Municipal de São Paulo. Sim, a capital paulista aparece retratada diversas vezes nos quadrinhos.

Quem é paulistano provavelmente já ficou parado no trânsito da Av. 23 de Maio. Daytripper, 2011, p. 136.

Originalmente, Daytripper foi publicada  em inglês como uma série mensal da Vertigo, de fevereiro a novembro de 2010, e quando saiu em volume único, em fevereiro de 2011, foi direto para a lista dos mais vendidos do “The New York Times”. Por isso, a narrativa é dividida em 10 capítulos que, em sua maioria, referem-se à idade do protagonista em algum momento importante da vida dele: o nascimento do filho Miguel; o desaparecimento do melhor amigo, Jorge dos Santos; ou o dia em que conheceu a mulher de sua vida na padaria, Ana.

Ao longo das páginas lindamente escritas e desenhadas, acompanhamos a trajetória de Brás, das pessoas que o cercam e daqueles de quem ele fala nos obituários. Em um dos capítulos, aliás, ele tem de falar sobre as vítimas de um acidente aéreo, que embora não seja dito, refere-se ao acontecido em 2007, mencionado como aquele que mudou “a vida de tantas pessoas – assim como a história da aviação brasileira para sempre”. (p. 154).

Por causa principalmente da profissão de Brás, a morte se infiltra em todos os momentos da história, mas o que parece realmente ser a mensagem central da obra é a de que as histórias devem ser vividas, começando com o questionamento colocado na contracapa da edição brasileira: “Quais são os dias mais importantes da sua vida?”, o que vai nos levar a refletir sobre nossas escolhas,

nossos sonhos, e de que forma estamos aproveitando nossa vida, sabendo que ela, da mesma forma que um livro, tem um fim. Nas páginas finais, os autores revelam:

“Cada referência, cada foto, cada cor e cada personagem, tudo foi construído de forma a reproduzir sentimentos. A sensação de que você está vivo, alegre, solitário, amedrontado ou apaixonado.
Queríamos aquela sensação de que a vida está acontecendo aqui, bem à nossa frente, e a estamos vivendo”.  

O lirismo e a fragmentação da narrativa, que não é linear, traz um tom enigmático e de fantasia à história, o que particularmente torna-a ainda mais convidativa.

Ontem, este blog completou seis anos de existência. Para mim é sempre um motivo de celebração poder dividir um pouco das minhas impressões sobre livros e sobre a vida. Agradeço a cada um que divide comigo essa história.

Por fim, voltando a falar dos projetos, que geralmente colocamos em pauta a cada início de ano, aqui vai uma dica: fazê-lo em conjunto com um amigo ou amiga! Tem motivação melhor?

Desejo a todos um 2023 com tudo o que merece ser vivido e projetos na companhia de amigos!

Abraços,

Patrícia.

PS. Não consegui colocar a legenda na segunda imagem, mas trata-se de Brás quando criança. Daytripper, 2011, p. 107.

Daytripper
Título original: Daytripper
Fábio Moon e Gabriel Bá
Barueri: Panini, 2011.
Tradução: Érico Assis
256 páginas

Será que realmente conhecemos as histórias contadas?

Certas histórias são recontadas de tantas formas que acreditamos conhecê-las o suficiente para não precisarmos ler os livros que as contêm. O que tenho percebido, porém, é que mesmo sabendo do que tratam seus enredos, quem são seus personagens ou como terminam, algumas proporcionam uma experiência que vai muito além do que nos foi contado inicialmente. Neste blog já citei pelo menos dois casos assim: O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson, e Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe. Ambas as obras trazem em seu interior algo diferente do que é normalmente propagado. A primeira é uma revelação sobre a dualidade existente em cada ser humano e a segunda, uma crítica à sociedade desprovida de valores. Essa sensação eu tive novamente ao ler Quarto de despejo: diário de uma favelada, da escritora brasileira Carolina Maria de Jesus.

Saber que o livro é o relato sobre as dificuldades de uma moradora da extinta favela do Canindé, catadora de papel e mãe solteira de três filhos eu diria que é apenas o começo. Durante a leitura, somos levados a uma experiência quase sensorial no convívio com a dura realidade de Carolina e dos outros moradores da favela, e a compreender, com maior profundidade, o que é o desespero, a perseverança e a crueldade.

Publicado em 1960, Quarto de despejo é uma compilação das anotações feitas por Carolina em seus cadernos, no período de 1955 a 1960, organizada por Audálio Dantas, o jornalista que descobriu a escritora enquanto fazia uma reportagem sobre a favela que crescia às margens do rio Tietê. O livro foi traduzido para mais de 40 idiomas e é citado na obra Remarkable diaries (sem tradução no Brasil) – que reúne diários notáveis, como diz o próprio título –, publicado nos Estados Unidos pela DK Publishing, em 2020. Virginia Woolf, Liev Tolstói, Anne Frank e Arthur Conan Doyle são alguns dos escritores mencionados e que fazem companhia à Carolina, cujo diário representa um retrato vívido da pobreza e da fome no Brasil daquela época, que infelizmente não é muito diferente do que vemos hoje. Aliás, são inúmeras as passagens que falam sobre a fome que, segundo a autora, tem a cor amarela:

“27 de maio … Percebi que no Frigorifico jogam creolina no lixo, para o favelado não catar a carne para comer. Não tomei café, ia andando meio tonta. A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estomago.
Comecei sentir a boca amarga. Pensei: já não basta as amarguras da vida? Parece que quando eu nasci o destino marcou-me para passar fome. Catei um saco de papel. Quando eu penetrei na rua Paulino Guimarães, uma senhora me deu uns jornais. Eram limpos, eu deixei e fui para o deposito. Ia catando tudo que encontrava. Ferro, lata, carvão, tudo serve para o favelado. O Leon pegou o papel, recibi seis cruzeiros. Pensei guardar o dinheiro para comprar feijão. Mas, vi que não podia porque o meu estomago reclamava e torturava-me.
… Resolvi tomar uma media e comprar um pão. Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as arvores, as aves tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos”. (p. 44)

Nascida em 1914, em Sacramento (MG), Carolina estudou somente até o segundo ano do ensino fundamental, mas logo descobriu a paixão pelos livros. Em uma entrevista, a filha de Carolina, Vera Eunice, conta que sua mãe, assim que chegou a São Paulo, foi trabalhar na casa de um famoso médico e quando ele lhe falou que nos finais de semana ela tinha folga, Carolina disse que gostaria de ficar na biblioteca do médico. Ler era uma parte importante da vida dela:

“Fui catar papel, mas estava indisposta. Vim embora porque o frio era demais. Quando cheguei em casa era 22,30. Liguei o radio. Tomei banho. Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem”. (p. 24)

Para Carolina a escrita também tinha um papel fundamental, não só para contar a sua história, mas para esquecer a fome, vingar-se – dos vizinhos e de todos aqueles que lhe causassem algum aborrecimento e teriam seus nomes registrados em seu livro – e para continuar vivendo, pois quando escrevia ela tinha esperança de um dia ter seu livro publicado e deixar para trás a fome e a favela, que para ela era o quarto de despejo da cidade:

“As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”. (p. 37)

Claro que essa é uma história com muito sofrimento, mas pela escrita de Carolina temos vários momentos cômicos, quando ela faz críticas aos políticos, à Igreja e aos demais favelados. Sobretudo, essa á a história de uma mulher adorável, capaz de transcender sua condição por meio das letras.


Quarto de despejo: diário de uma favelada
Carolina Maria de Jesus
São Paulo: Ática, 2014.
200 páginas

Palavras que esticam horizontes

Uma das coisas mais incríveis que a literatura oferece é a possibilidade de vivenciarmos realidades tão distintas da nossa. De repente, estamos em algum lugar do sertão nordestino, em meio a um drama familiar marcado pela pobreza, pela ignorância, pela violência e pelo preconceito, aprendendo que são muitos e não somente “eu” que existo. Para esse universo, quem nos transporta é Stênio Gardel, com seu primeiro romance A palavra que resta.

A história começa com Raimundo Gaudêncio de Freitas, aos 71 anos, desenhando as letras de seu nome pela primeira vez. De família pobre da roça, Raimundo nunca teve oportunidade de ir à escola, ficando só com a promessa de Cícero, o amigo que depois se tornaria seu grande amor, de ensiná-lo a ler e escrever. No entanto, a descoberta do romance entre os dois por seus pais pôs fim a esse e a outros planos.

Agora, mais de 50 anos depois, Raimundo finalmente teria a chance de ler a carta deixada por Cícero, que partira com a família sem deixar nenhum rastro. Apesar de ser o único elo que restava entre ele e seu amor de juventude, Raimundo não deixou que ninguém lesse a carta para ele, nem mesmo a irmã Marcinha, que sempre o apoiara. Como ele mesmo dizia que não saber ler era “quase ser cego podendo enxergar”, enfim chegaria o dia em que sairia da escuridão:

“Uma carta inteira. Uma palavra seguindo a outra, quantas palavras? Mandar carta para uma pessoa que não sabia ler, só sendo. A ponta do lápis pairou acima da linha. O próximo nome tinha escrito a carta cinquenta e dois anos antes. Ao lado do caderno, o envelope encruado, sempre fechado. Raimundo não deixou ninguém ler e envelheceu com o desejo de saber o que ela diz crescendo dentro dele. Feto idoso, rebento tardio. A carta guardava uma vida inteira”. (p. 12)

Dividido em quatro partes, o livro traz na primeira as lembranças dos anos vividos por Raimundo na florescência do seu amor assim como do conhecimento da dor, fruto do preconceito, da violência e do abandono. Na segunda, conhecemos a história de Damião, pai de Raimundo, que passa a ser o narrador. Por meio desse relato, entendemos as motivações para a proteção do pai a Raimundo, que, no entanto, ocorre de forma equivocada:  

“– O pai acha que vou dar trela pra gente que nem conheço? Eu ainda me importo com o que o senhor pensa de mim porque dói no peito, mais que nas costas, quando vejo que sou pro senhor ofensa tão grande, meu pai, mas um qualquer, se vier com desaforo, vai ouvir também, e se cismar de me bater, sei me defender. Gosto de homem, mas não deixei de ser um”. (p. 41)

Na terceira parte, Raimundo deixa a casa dos pais e o sertão e vai para a cidade, onde começa a trabalhar primeiro como chapa (assistente de caminhoneiro) e depois costureiro, anunciado na placa com o trocadilho Rai – Mundo das Linhas e Botões. E é usando o repertório herdado da mãe Maria Caetana, que ele fala sobre a lembrança que tinha dela:

“… ela fosse se esticando e se afinando, até ficar mais fina que a linha que entra no olho da agulha, quem sabe até um dia se partir ou a gente soltar as pontas, a minha está comigo, um nó cego em volta do peito, e é com ela que estou voltando, virei costureiro, imagine! As vezes que ajeitei a máquina da senhora ou vi a senhora costurando, será que ia gostar de saber que teve um filho que costura?”. (p. 79)

Ainda nessa parte, Raimundo fala sobre as pessoas que fazem parte da sua vida na cidade, entre as quais Suzzanný Dinamarka de Oliveira, travesti que acolhe Raimundo mesmo depois de ser agredida por ele, mostrando sua força, alegria e orgulho de ser quem ela é, apesar de toda violência que sofre. Por fim, a quarta e última parte é a história da própria carta, mas vou parar por aqui para evitar spoilers.

Esta é a obra de estreia de Stênio, cuja narrativa é poética e envolvente, mas sem pudores para revelar a violência, o desejo e o preconceito nas relações humanas. Raimundo é o principal narrador, porém, em sua fala, mistura-se presente e passado, lembranças e suposições e as falas de outros personagens, o que faz com que nem sempre seja fácil acompanhar.  

Um livro vai servir de formas diferentes a cada pessoa. Por isso, sei que talvez esta não seja uma obra que agradará a todos por causa dos temas sensíveis e da violência retratada, mas achei importante trazê-la aqui, pois além de linda e tocante, ela certamente nos faz ver além de nós mesmos, ou como aprendeu e nos ensinou Raimundo: “… mas tem palavra que a gente escuta na vida que parece poesia, se as palavras se esticam e esticam o horizonte da gente“. (p. 59)

A palavra que resta
Stênio Gardel
São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
152 páginas

7 livros brasileiros que fizeram meu 2021

Nada mais propício para esta época do ano do que fazer um balanço das leituras realizadas. 2021 foi para mim um ano de ótimos livros e dentre os que mais se destacaram estão os de autores e autoras brasileiros. Alguns deles se revelaram uma bela surpresa e outros, que eu já conhecia, mostraram novas qualidades ou confirmaram minha preferência. Conheça abaixo os livros nacionais que marcaram este meu ano.

Torto arado

1. Torto Arado
Itamar Vieira Junior
São Paulo: Todavia, 2019.
264 páginas

Difícil encontrar alguém que não tenha incluído este livro entre as melhores leituras do ano. Vencedor dos prêmios Jabuti e Oceanos, ele traz a história das duas irmãs, Belonísia e Bibiana, que após um acontecimento trágico têm seus destinos entrelaçados. A narrativa é construída de forma brilhante, revelando-se aos poucos e ganhando não só a atenção, mas o coração do leitor. Paralelamente ao desenvolvimento das irmãs, o autor traça um retrato do Brasil esquecido por quem vive nas metrópoles, mas certamente presente em várias regiões do país ainda hoje.  Questões como a exploração dos trabalhadores rurais, o direito à propriedade, os quilombolas, a violência contra as mulheres aparecem na obra, trazendo muitas reflexões e ensinamentos. Em uma passagem, o pai das garotas diz: “Se o ar não se movimenta, não tem vento, se a gente não se movimenta, não tem vida”. (p. 99). Só posso dizer que Torto arado pode até começar como uma brisa, mas revolve dentro de nós como uma ventania.

se deus me chamar não vou2. Se deus me chamar não vou
Mariana Salomão Carrara
São Paulo: Editora Nós, 2019.
160 páginas

Ao receber um elogio da professora, que diz que se ela continuasse praticando um dia seria escritora, Maria Carmem Rosário decide fazê-lo, escrevendo sobre os acontecimentos daquele ano, entre seus 11 e 12 anos – ao qual ela se refere como “a pior idade do universo”. Assim, acompanhamos o crescimento de Maria Carmem, tanto como escritora, com suas dúvidas sobre finais de capítulos e vírgulas, quanto como a garota que tenta descobrir seu lugar no mundo, refletindo sobre temas como morte, velhice, amor, Deus, família e principalmente solidão:

“Talvez seja assim com os velhinhos também, como os capítulos. Ninguém precisa decidir que certa parte da vida acabou. O corpo sente sozinho que não dá mais pra andar sem ajuda de alguma coisa que vendem na loja de velhos, e então, naturalmente, alguém vai lá e compra, e começamos um novo capítulo da vida. Vai ver é assim, e nem assusta tanto”. (p. 24)

Apesar de narrado por uma criança e com momentos de humor e leveza, os temas tratados no livro são angustiantes. Maria Carmem é uma garota que se sente excluída, tanto na escola – onde sofre violência física e emocional por “ter muito tamanho” – quanto na sua casa,  já que na ótima relação dos pais não sobra espaço para ela. Sua participação na família praticamente se limita à ajuda na “loja de velhos” (de produtos geriátricos) pertencente aos seus pais. Em uma triste cena, ela diz que a avó e ela não faziam companhia uma à outra, faziam solidão. Mesmo que alguns pontos da trama não tenham funcionado para mim, a história de Maria Carmem é tocante e não há como não torcer para que ela consiga fazer sua sonhada entrada triunfal ao som de “Livin’ la vida loca”.

Ciranda de pedra3. Ciranda de pedra
Lygia Fagundes Telles
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
224 páginas

Virgínia é a filha caçula de uma família rica que após a separação dos pais, Laura e Natércio, vai morar com a mãe e o padrasto Daniel, passando a viver de forma mais modesta. No entanto, percebemos que há algo além da condição financeira por trás do distanciamento entre ela e as irmãs, Bruna e Otávia, e da rejeição do pai. A primeira parte do livro mostra Virgínia ainda criança, tentando fazer parte do grupo formado pelas irmãs e pelos vizinhos, Afonso, Letícia e Conrado, representados pela ciranda de anões de pedra do jardim; na segunda, Virgínia, já crescida, vai descobrindo as fraquezas e os segredos de todos, além de sua própria identidade:

“— Assim é melhor. Então você ainda gosta dele? Terá que esquecer, Virgínia. Amar a pessoa errada não é das melhores coisas que nos podem acontecer e acontece com tanta frequência. Dante se esqueceu desse círculo no seu inferno, o dos rejeitados”. (p. 120)

Escrito em 1954, esse primeiro romance de Lygia Fagundes Telles aborda temas polêmicos para a época – loucura, suicídio, homossexualidade e outros que não vou mencionar, pois seriam spoilers. O sucesso desse drama familiar fez com que fosse adaptado duas vezes, em 1981 e em 2008, para a televisão, só que com várias diferenças em relação à obra original.

Meus desacontecimentos4. Meus desacontecimentos: a história da minha vida com as palavras
Eliane Brum
Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2017.
128 páginas

Com uma escrita forte, sincera, rica em imagens, sofrimento e lirismo, Eliane Brum conta aqueles que são os desacontecimentos de sua vida. Mas não só isso, em suas mãos as palavras deixam de ser somente um meio de transmitir uma mensagem para se transformar em sua própria existência:

“A palavra é o outro corpo que habito. Não sei se existe vida após a morte. Desconfio que não. Sei que para mim não existe vida fora da palavra escrita. Só sei ser – por escrito. No meu nome carrego o que sou e o que não sou, sustento o que busco e não alcanço, assim como o vazio entre as letras, o incapturável em mim. O indizível que também me constitui”. (p. 73)

Se as palavras se tornaram um meio de ela se sentir viva e de ser notada, ao mesmo tempo, com elas a autora dá vida a outras pessoas, comuns demais para serem percebidas na sociedade, mas cuja importância Brum revela e transforma em um grande acontecimento.

S. Bernardo5. São Bernardo
Graciliano Ramos
Rio de Janeiro: BestBolso, 2011. Livro vira-vira
154 páginas

Quando peguei este livro, não imaginei que ele se tornaria um dos meus favoritos do ano. A escrita de Graciliano Ramos é enxuta, precisa e envolvente e neste livro o autor mostra um pouco de como ela se desenvolve, por meio do seu narrador, Paulo Honório.

“ Tínhamos desperdiçado tantas palavras! […]
O que eu dizia era simples, direto e procurava debalde em minha mulher concisão e clareza. Usar aquele vocabulário, vasto, cheio de ciladas, não me seria possível. E se ela tentava empregar a minha linguagem resumida, matuta, as expressões mais inofensivas e concretas eram para mim semelhantes às cobras: faziam voltas, picavam e tinham significação venenosa”. (p. 119)

No momento em que decide escrever suas memórias, Paulo Honório está com 50 anos, e seu livro, além do caráter prático de gerar renda, servirá para revisitar alguns fatos ocorridos e tentar compreendê-los, especialmente aqueles que marcaram sua relação com a esposa Madalena.

Publicado em 1934, S. Bernardo é o segundo romance de Graciliano Ramos, que apresenta forte crítica social e mostra os dramas do povo nordestino por meio de seu protagonista capitalista, violento e possessivo. Foi adaptado para o cinema, no filme homônimo dirigido por Leon Hirszman e protagonizado por Othon Bastos, que em 2015 entrou para a lista de 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos, eleitos pela Abraccine.

Meio intelectual, meio de esquerda6. Meio intelectual, meio de esquerda
Antonio Prata
São Paulo: Editora 34, 2010.
176 páginas

Este livro é uma seleção de crônicas publicadas – em sua maioria, no jornal O Estado de S.Paulo, de 2004 a 2010 –, além de uma evidência da razão pela qual Antonio Prata é considerado um dos melhores cronistas da atualidade. Sob seu olhar atento, nada passa despercebido: da mudança climática do planeta à barriga do Ronaldo fenômeno; das diferenças linguísticas entre paulistas e cariocas à presença de metano em Marte; do convívio entre vizinhos em prédios à aleatoriedade das músicas do iPod, provocando no leitor novas percepções, reflexões e muitas risadas.

Em “Ossos do ofício”, o autor fala sobre a compulsão por trocadilhos dos donos de petshops: AUqueMIA, Oh my DOG!, AmiCão, só para citar alguns que talvez você até tenha visto pelas ruas da cidade. Mas a constatação termina com a hilária contribuição do autor:

“E já que entramos no terreno dos trocadilhos bilíngues, gostaria de expor um, de minha lavra. Surgiu quando eu descobri que jogo de palavras em inglês é pun, e pode ajudar a todos que, como eu, são repreendidos ao soltarem algo como ‘Wim Wenders e aprendenders’, numa mesa de bar. Basta encarar seus detratores e dizer, com falso arrependimento: ‘Desculpa, pessoal, soltei um pun’”. (p.25)

Manuelzão e Miguilim7. Manuelzão e Miguilim: corpo de baile
João Guimarães Rosa
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
210 páginas

Se a leitura de certos autores por si só é intimidante, o que dirá escrever sobre eles? No entanto, achei que seria injusto não falar aqui sobre o livro que me arrebatou neste ano, ou melhor dizendo, sobre o garoto que ganhou um lugar no meu coração: Miguilim. O título do livro, Manuelzão e Miguilim, refere-se aos protagonistas de duas das sete novelas que fazem parte da obra Corpo de Baile, composta ainda por No Urubuquaquá, no Pinhém e por Noites do sertão.

A novela “Uma estória de amor” fala sobre Manuelzão, vaqueiro de prestígio e encarregado da fazenda Samarra. A trama se desenvolve durante a festa de inauguração da capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro – construída para cumprir a promessa que Manuelzão fizera à falecida mãe. É nesse ambiente festivo que se encontram reunidos desde fazendeiros ricos a pessoas marginalizadas; o sagrado e o profano; o real e o imaginário; o passado (nas reminiscências de Manuelzão) e o presente.

Se Manuelzão é o registro da maturidade, na novela “Campo geral” o tema gira em torno da infância. Acompanhamos a descoberta do mundo pelos olhos de um garoto de oito anos, Miguilim. A natureza, os animais, as pessoas, nada fica de fora da percepção de Miguilim em seu processo de aprendizagem, que carrega lições duras sobre morte, injustiças e tristezas. A forma como Guimarães Rosa conta a história é cativante, capaz de nos fazer sorrir e chorar ao longo dessas poucas páginas. Escolhi a passagem abaixo dentre as várias que mesclam simplicidade e poesia:

“O Dito dizia que o certo era a gente estar sempre brabo de alegre, alegre por dentro, mesmo com tudo de ruim que acontecesse, alegre nas profundezas. Podia? Alegre era a gente viver devagarinho, miudinho, não se importando demais com coisa nenhuma”. (p.119)

Este é o último post de 2021 e aproveito para agradecer a todos que estiveram aqui comigo e desejar-lhes um novo ano com tudo de melhor.

Agradeço também aos clubes de leitura que me fizeram descobrir alguns dos livros presentes nesta seleção e à minha amiga Akemi, que me presenteou com o incrível livro do Graciliano Ramos.

Que 2022 venha com muitas alegrias e leituras!

Abraços,

Patrícia.

Quem tem medo de Machado de Assis?

Recentemente Machado de Assis voltou a ser notícia. O autor, pouco conhecido em outros países, ganhou uma reedição pela Penguin Classics de Memórias póstumas de Brás Cubas, com tradução de Flora Thomson-DeVeaux. Além dos elogios entusiasmados de seus novos leitores, o livro esgotou em um dia nos Estados Unidos. Reconhecimento merecido de um dos maiores autores da nossa literatura, que mesmo em seu país, é visto com um certo distanciamento, associado sempre à dificuldade de sua leitura.

Minha experiência com o referido livro é a de muitos, que o leram na escola. No entanto, foi algo que me marcou positivamente. Tanto por ser a primeira vez em que um autor “conversava” comigo, quanto pela novidade dos capítulos com reticências, por exemplo em “De como não fui ministro d’Estado”. Todavia, nessa minha releitura, após décadas, duas coisas ficaram claras: as razões que fazem com que pessoas leiam Machado de Assis e as que fazem com que não leiam.

Certamente, ler Machado de Assis vai exigir um pouco mais de seu leitor. Não se trata de uma leitura em que a trama é envolvente e a narrativa fluida. Mas aqueles que aceitarem o desafio, algumas páginas depois já se acostumarão com o jogo. Nesse livro, as palavras nem sempre assumem o seu real significado; Machado escreve com ironia, sarcasmo e por isso, muitas vezes ele fala uma coisa e quer dizer o oposto. Quando descreve seu primeiro amor, Marcela, Brás Cubas comenta que ela era boa moça, só que na sequência acrescenta: “luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes”. Como Marcela saía com ele e com Xavier, o defunto autor, comparando as fases da paixão às do governo, também ironiza:

“Teve duas fases a nossa paixão, ou ligação, ou qualquer outro nome, que eu de nomes não curo; teve a fase consular e a fase imperial. Na primeira, que foi curta, regemos o Xavier e eu, sem que ele jamais acreditasse dividir comigo o governo de Roma; mas, quando a credulidade não pôde resistir à evidência, o Xavier depôs as insígnias, e eu concentrei todos os poderes na minha mão; foi a fase cesariana.” (Capítulo 15 – Marcela, p. 54)

Além das inversões de sentido, há muitas metáforas, comparações com personagens, obras, eventos importantes do passado e uso de vocábulos não tão comuns, mas que uma boa edição com notas de rodapé resolve rapidamente. No final das contas, uma única frase poderá lhe valer uma aula. E, se não devemos temer Machado de Assis, tampouco podemos confiar nele. Em Memórias póstumas de Brás Cubas, ele parece sempre criar uma armadilha para o leitor descuidado. Temos um narrador em primeira pessoa, que nos levanta uma suspeita, mas que por estar morto, devolve-nos a confiança de que está a dizer a verdade, uma vez que ele não tem mais nada a perder. Só que no fundo, esse defunto autor é vaidoso e vai dando pistas durante a narrativa de suas mentiras e exageros. Logo no início, quando fala sobre seu enterro, espanta-se com a pequena quantidade de pessoas presentes, apenas onze, e justifica:

“Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia, peneirava uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu à beira de minha cova: ‘Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que têm honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado’. Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei.” (Capítulo 1 – Óbito do autor, p. 5)

A trama começa falando sobre a condição desse narrador, que morreu aos 64 anos de pneumonia, embora ele afirmasse ter morrido por causa de uma “ideia fixa”, a de criar um emplasto para aliviar a melancolia da humanidade – o Emplasto Brás Cubas – que enfim tornaria seu nome famoso. Claro que isso ele só admitiria depois de morto, pois dependendo de quem fosse seu interlocutor, o discurso mudava. O crítico e professor de teoria literária, Roberto Schwarz, em seu livro Que horas são? (1987), explica:

“Este é ora um cristão, que se dirige ao seu governo, ora uma pessoa privada, que se confessa aos amigos, ora uma voz do além, perfeitamente sincera, tudo no espaço limitado de umas poucas linhas. Juntas, estas três atitudes – a piedade cristã, o interesse pelo lucro e o desapego do defunto – compõem um mundo completo e definido de que elas seriam as partes exaustivas”. (“Complexo, moderno, nacional e negativo”, p. 120)

Virgília e Brás Cubas dançando no baile

Brás Cubas era filho de uma família abastada, o que lhe permitiu viver de renda sem nunca precisar trabalhar. Seu nome foi um artifício criado pelo pai para conferir-lhe algum parentesco com o fundador da vila de São Vicente, o capitão-mor Brás Cubas, em vez de ligá-lo ao desconhecido Damião Cubas. Quando criança, recebera o apelido de menino diabo, “verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso”. Na juventude, após envolver-se com a cortesã Marcela, que lhe amara “durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos”, foi estudar na Europa, a mando do pai, onde se destacou como “um acadêmico estroina, superficial, tumultuário e petulante”. De volta ao Brasil, seu pai tinha um novo projeto para ele, que envolvia o casamento com Virgília e a carreira de deputado. No entanto, apareceu Lobo Neves, que lhe roubou ambos. Várias tentativas para ingressar na política e para casar-se surgiram depois. Entretanto, Virgília reaparece durante um baile, dando início ao triângulo amoroso, responsável pelos momentos mais movimentados do enredo. Mas não se engane, é uma história sem reviravoltas, ação ou romance, sobre um morto que ao longo da narrativa tentará nos convencer de seu valor, ou de sua insignificância, na maioria das vezes de maneira espirituosa, sarcástica e divertida:

“E não me arrependo; remocei. Mas, meia hora depois, quando me retirei do baile, às quatro da manhã, o que é que fui achar no fundo do carro? Os meus cinquenta anos. Lá estavam eles os teimosos, não tolhidos de frio, nem reumáticos — mas cochilando a sua fadiga, um pouco cobiçosos de cama e de repouso.” (Capítulo 134 – Cinquenta anos, p. 339)

Publicada em 1881, Memórias póstumas de Brás Cubas é considerada a obra que dá início à segunda fase do escritor, em que ele abandona os resquícios do Romantismo e incorpora os elementos do Realismo. Não é, porém, um livro tradicionalmente realista, pois já começa com um fato fantástico: um morto escrevendo suas memórias, e que o faz inventando e exagerando o tempo todo, deixando de lado a objetividade e a imparcialidade dos narradores realistas. Entretanto, traz situações e lugares reais, além de um retrato da sociedade brasileira do século XIX – ociosa, infrutífera, apreciadora das novas tendências humanistas, mas presa aos costumes do passado, preocupada em tirar proveito de todas as coisas e “vencer na vida”.

Por meio de Brás Cubas, o Bruxo do Cosme Velho – como ficou conhecido o autor por causa da rua onde morava e de um poema de Carlos Drummond de Andrade – fazia uma crítica não somente à sociedade brasileira, mas de certa forma a toda a humanidade. Machado de Assis sentia- se desiludido com os homens e deixou isso claro na última frase do livro. Com a filosofia criada por Quincas Borba (personagem que dará título ao livro seguinte do autor), o Humanitismo, Machado mostrou sua oposição ao Positivismo e ao Determinismo, pensamentos em moda vindos da Europa. Da mesma forma, criticou o Romantismo, com a introdução de um protagonista, que nada tinha de herói, e seu par, Virgília, que também não representava a mocinha (ela preferia um título de nobreza a viver um grande amor). Na descrição de Brás Cubas, quando tinha 17 anos, encontra-se o ideal romântico e depois o que aconteceu a ele:

“Ao cabo, era um lindo garção [rapaz], lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz como o corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com eles nas ruas do nosso século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deitá-lo à margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes, e, por compaixão, o transportou para os seus livros.” (Capítulo 14 – O primeiro beijo, p. 51)

A crítica estende-se também aos leitores acostumados com as obras românticas, que se preocupavam somente com a sucessão de fatos:

“Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem…”. (Capítulo 71 – O senão do livro, p.209)

Mais do que uma leitura pausada, porém, em Memórias póstumas de Brás Cubas a presença do leitor é essencial, tanto para justificar o diálogo quanto para organizar e construir o entendimento. E, principalmente, desvendar o que realmente está sendo dito. Em seu livro Durante aquele estranho chá (2002), Lygia Fagundes Telles dedica a Machado de Assis um capítulo, e revela:

“O texto (conto ou romance) vai fluindo sem mistério, com a naturalidade de um rio. No entanto, na aparente clareza desse rio começam a aparecer, aos poucos, certos coágulos de sombra, um aqui, outro lá adiante… Mas de onde vieram? Esses coágulos. E de onde vem agora essa névoa delicada e perversa? O personagem vai levantando a gola da capa e a cara exposta já não parece tão exposta assim – mas o que está acontecendo?” (“Machado de Assis: rota dos triângulos”, p. 51)

As imagens em destaque e a do baile pertencem à coleção de Machado de Assis, publicada pela editora Edigraf, s.d.

Memórias póstumas de Brás Cubas
Machado de Assis
São Paulo: Paulus, 2014.
388 páginas - E-book

7 livros em 7 dias

Este post poderia receber como título “7 livros para ler em um dia – parte 2” (veja o post com a parte 1). Ou ainda “Semana da leitura mágica”, como está sendo chamado o desafio lançado por alguns canais literários, que se inspiraram no livro O ano da leitura mágica (tem post aqui), em que Nina Sankovitch se propôs a ler um livro por dia durante um ano. Independentemente do nome escolhido, o que eu posso dizer é que foram sete dias noites seguidas (de domingo a sábado) em que simplesmente esqueci tudo para mergulhar nestas histórias:

Nada a perder

1. Nada a perder
Jeff Lemire
272 páginas
São Paulo: Nemo, 2018.
Título original: Roughneck

Dois homens, aparentemente em busca de briga, reconhecem o ex-promissor jogador de hóquei, Derek Ouelette, bebendo no balcão de um decadente bar e resolvem perturbá-lo. Reservado e solitário desde que fora expulso do time, quando ainda era jovem, por agredir um jogador rival, Derek tenta se livrar deles sem sucesso, o que acaba despertando mais uma vez seu lado mais violento. Essas são as imagens iniciais dessa graphic novel, do premiado quadrinista, conhecido pelo Condado de Essex e pela série Black Hammer. A história gira em torno da chegada da também problemática irmã de Derek, Beth, que após mais uma agressão do namorado Wade (de quem está grávida) decide abandoná-lo e voltar para sua pequena cidade. Ambos carregam os arrependimentos do passado e a falta de perspectiva para o futuro, mas de alguma forma esperam por uma redenção. Misturando imagens de um presente frio e sem atrativos na cor azul (pinceladas pelo vermelho das cenas violentas) com as cores vibrantes do passado, Lemire traz um enredo que fala sobre amadurecimento, resiliência e superação, mesmo para aqueles que parecem não ter mais motivos para seguir em frente.

Histórias Mamede

2. Histórias para ler sem pressa
Anônimo
Tradução Mamede Mustafa Jarouche
São Paulo: Biblioteca Azul, 2008.
74 páginas

Essa pequena obra reúne 30 contos da tradição árabe traduzidos e selecionados pelo renomado Mamede Mustafa Jarouche. Vencedor de vários prêmios de tradução, incluindo o Prêmio Jabuti, Mamede foi o responsável pela tradução do clássico As mil e uma noites diretamente do árabe para a língua portuguesa. Em Histórias para ler sem pressa, encontramos califas, vizires, sábios e até mesmo gramáticos em situações (por vezes cômicas) que tratam de justiça, religião, aritmética, entre outras. Essas pequenas histórias, que vão do século VIII ao XVIII d.C., porém, mais do que mostrar um pouco da cultura árabe, são capazes de nos ensinar muito da sabedoria universal.

A revoada3. A revoada (O enterro do diabo)
Gabriel García Márquez
Rio de Janeiro: Record, 2014.
142 páginas
Título original: La Hojarasca

Publicado em 1955, esse é o primeiro livro de Gabriel García Márquez e, no entanto, nele já estão presentes alguns elementos que farão parte de outras obras do autor: a cidade fictícia de Macondo e o tema da solidão. O enredo é centrado na morte de um médico, considerado um pária pela cidade toda, razão pela qual o seu velório contou com a presença de somente três pessoas: o coronel (que prometera ao médico enterrá-lo); a filha do coronel chamada Isabel (que fora obrigada pelo pai a acompanhá-lo nessa triste tarefa) e o filho de Isabel (levado pela mãe para protegê-la da reação dos outros). Acompanhamos os pensamentos de cada um desses três narradores, com suas angústias e reflexões acerca daquele momento. E por meio das lembranças do coronel e de sua filha, conhecemos a história do estranho médico, que chegara à cidade por indicação de Aureliano Buendía (um dos personagens principais de Cem anos de solidão) e foi acolhido pela família do coronel antes de se isolar de todos na casa onde vivera até sua morte. Márquez fala sobre a revoada (hojarasca no original) na introdução, como um aluvião que carrega também a destruição e gerou impactos por toda a cidade, assim como a passagem da companhia bananeira e do estranho doutor:

“Era um aluvião revolto, alvoroçado, formado pelas sobras humanas e materiais dos outros povoados; restolhos de uma guerra civil que parecia cada vez mais remota e inverossímil. (…) Em menos de um ano, jogou sobre o povoado os escombros de numerosas catástrofes anteriores à própria invasão, espalhou nas ruas sua confusa carga de sobras.” (p.7)

Enterre seus mortos4. Enterre seus mortos
Ana Paula Maia
São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
112 páginas E-book

Algumas narrativas parecem vir acompanhadas por imagens durante sua leitura. Enquanto lia Enterre seus mortos eu pensava nos filmes de Tarantino e no vídeo da música “Go with the flow” do Queens of Stone Age. A razão mais óbvia para isso talvez seja o espaço onde se passa a história: na estrada. Diariamente Edgar Wilson e Tomás percorriam as estradas recolhendo animais mortos e levando-os para serem triturados em uma empresa de compostagem. A morte faz parte do cotidiano de ambos: Wilson preocupa-se com a matéria, fechando os olhos dos animais para que tivessem descanso; Tomás, um ex-padre encarregava-se da alma, dando a última bênção. A rotina deles é interrompida quando Wilson encontra o cadáver de uma mulher e, dias depois, o de um homem. Mesmo não sendo responsabilidade deles cuidar de humanos, por causa do descaso da polícia e da ameaça dos abutres, eles decidem encontrar um fim mais digno para aqueles mortos:

“Acostumado a lidar com o fim das coisas, Edgar Wilson não gosta de deixar os homens insepultos. Justiça não haveria para ambos, mas um túmulo e uma pequena lápide talvez conseguisse.” (Posição 978)

O caso Saint Fiacre5. O caso Saint-Fiacre
Georges Simenon
São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
138 páginas
Título original: L’affaire Saint-Fiacre

Publicado em 1931, esse é o décimo terceiro livro do escritor belga protagonizado pelo famoso comissário Jules Maigret. Havia lido somente A casa do canal (já citado em um post), mas não conhecia o personagem que, aliás, chegou a ser interpretado em uma série televisiva de 2016 por Rowan Atkinson (o Mr. Bean!). O enredo traz Maigret de volta à sua cidade natal Saint-Fiacre, após muitos anos, por causa de um bilhete anônimo que anuncia um assassinato na primeira missa de finados. Durante o cerimonial, a condessa de Saint-Fiacre acaba morrendo, segundo o médico, vítima de embolia. Maigret admirava a condessa, dona do castelo administrado pelo pai dele, e decide investigar o que acredita ter sido um assassinato. Relembrando seu passado, Maigret percebe que as aparências enganam, cada um dos personagens levava uma vida secreta, até mesmo a condessa. Talvez seja cedo para falar, mas Poirot e Sherlock ainda continuam sendo meus favoritos!

Coisa mais próxima da vida6. A coisa mais próxima da vida
James Wood
São Paulo: Sesi-SP Editora, 2017.
120 páginas
Título original: The nearest thing to life

James Wood é ensaísta, escritor e um dos mais conhecidos críticos literários da atualidade por sua contribuição para os jornais The Guardian, The New York Times e para a revista The New Yorker. Wood costuma mostrar em seus trabalhos a maneira como literatura e realidade estão interligadas. Mas se em sua obra Como funciona a ficção, de 2008, (para os mais atentos, é dessa obra a frase destacada neste blog), ele faz uso dos próprios elementos literários para mostrar tal proximidade (narrativa, personagens, detalhe, linguagem etc); em A coisa mais próxima da vida, o autor faz tal análise utilizando temas universais como morte, religião e os porquês da vida. Trata-se de um ensaio que mistura muito da vida pessoal de Wood. Composto por quatro capítulos correspondentes a ensaios descontínuos, sua unidade se mantém pela própria frase de George Eliot, que inspirou o título do livro: “A arte é a coisa mais próxima da vida; é um modo de aumentar a experiência e ampliar nosso contato com os semelhantes para além de nosso destino pessoal”.

Passagem para o Ocidente7. Passagem para o Ocidente
Mohsin Hamid
São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
168 páginas
Título original: Exit west

Saeed e Nadia se conhecem durante um curso noturno sobre identidade empresarial e marcas de produtos e, mesmo com a cidade à beira do abismo, tudo parece seguir o fluxo normal e por vezes lento da vida: “um garoto conheceu uma garota numa sala de aula e não lhe dirigiu a palavra. Por muitos dias.” À medida que a guerra civil se intensifica, porém, o relacionamento entre eles muda rapidamente. Nadia passa a viver com Saeed e os pais dele por causa dos lockdowns e da violência constante nas ruas. Até que um acontecimento trágico faz com que eles pensem em fugir do país. Hamid traz elementos fantásticos para contar o drama dos refugiados. Só que em vez de botes de plástico cruzando mares, como vemos frequentemente nos jornais, aqui existem portais que levam as pessoas além das fronteiras:

“O efeito das portas sobre as pessoas também se alterou. Tinham começado a circular rumores sobre portais que podiam levar o sujeito a outro lugar, em geral a lugares distantes, muito afastados daquele país convertido em armadilha mortal. Algumas pessoas alegavam conhecer gente que conhecia gente que tinha atravessado tais portais. Uma porta normal, diziam, podia tornar-se uma porta especial, e isso podia acontecer sem aviso, com qualquer porta. A maioria das pessoas julgava esses rumores um disparate, superstição de gente parva. Mas ainda assim muita gente começou a encarar suas próprias portas de modo ligeiramente diferente.” (p.56)

Guerra civil, diferenças religiosas, desigualdades sociais, adaptação cultural e família são apenas alguns temas abordados pelo autor, além de claro, o drama dos refugiados. Da mesma forma que trabalha o enredo, Hamid sempre oferece algum elemento diferente em sua narrativa – como ele mostrou em Como ficar podre de rico na Ásia emergente (tem post aqui) –; nessa obra ele acrescenta o fantástico ao real e nos mostra que é um exímio contador de histórias.

Todo mundo é um Costa e Oliveira

Glória, do escritor fluminense Victor Heringer, é como ele mesmo disse, “uma comédia de costumes de costumes que ninguém tem”. O autor começa parafraseando Goethe com “Os anos de aprendizado dos Alencar Costa e Oliveira” para contar a história desta família, marcada por duas peculiaridades – a disposição para zombaria, mesmo nas adversidades quando, aliás, eles usavam o bordão “Deus é, era, gago”, e tudo acabava em gargalhadas. Além do fato de todos da linhagem morrerem de desgosto.

O núcleo familiar era formado pelo pai, um professor de geografia que adorava mapas; a mãe D. Noemi, louca por quebra-cabeças, e os três filhos: Benjamim, Daniel e Abel. Benjamim (o filho mais velho) parece ser o menos afortunado dos três, como sugerem os títulos dos capítulos “A graça de…”, tanto para Abel quanto para Daniel e “A desgraça de Benjamim”. A mãe dizia:

“O menino não, o menino tinha cara de susto. Chorou ao nascer como todos os outros, mas quando parou o rosto conservou a expressão de espanto. Seu filho mais velho tinha olhos muito grandes, a boca estava sempre entreaberta. Um respirador bucal, segundo o pediatra. Por isso a lentidão quase irritante em reagir aos estímulos externos”. Posição 234.

Da família Costa e Oliveira, faziam parte também doze senhoras, todas viúvas, e mais D. Letícia, que morava em uma pequena chácara em Santa Maria Madalena. A última vez em que todos estiveram reunidos foi no Natal de 1989, pois nos anos seguintes houve uma sucessão de mortes, começando pela do pai, em uma quarta-feira de cinzas, ironicamente depois que ele saiu fantasiado de fim do mundo no Carnaval. Alguns diziam que ele havia morrido de desgosto, como mandava a tradição familiar, outros afirmavam que ele morrera de Maiakóvski, poeta que desde que ele passara a ler, deixara-o perturbado. Quanto às doze senhoras, todas morreram de desgosto:

“Quando a décima segunda morreu, em janeiro de 1994, a décima terceira, d. Letícia, se esforçou para não chorar. Chorar a morte da última irmã era abrir a porta ao desgosto, e desgosto, no caso dos Costa e Oliveira, era a morte”. Posição 305.

A vida segue para os demais. Vários anos se passam, o bordão não é mais repetido, os filhos já não fazem gracejo de tudo (exceto Benjamim) e assumem rumos diferentes. Abel, o caçula, fez teologia e assim que foi ordenado pastor, viajou para a África como missionário. Daniel fez administração, casou-se com a filha do vice-presidente da empresa em que trabalha, teve um filho chamado Benjamim e mora em um grande apartamento no Leme. Só Benjamim continua morando com a mãe em Copacabana, estudou Museologia, mas dizia-se artista plástico. Pintava telas e mentia aos familiares que tinha admiradores da sua arte na internet. E era o único que havia herdado a galhofa do pai, fazendo gracejo de tudo. Até que adoeceu, diagnosticado com o mal da família.

Quando finalmente Benjamim se recuperou, removeu a pintura “Gomorra” da parede, feita para provocar o irmão pastor quando ele viesse visitá-lo; arrumou um emprego em um importante museu e foi morar com uma atendente de telemarketing chamada Natália Falcão, que ele conhecera na internet e cuja feiúra não passava despercebida. “Benjamim viveria na Glória”, ironiza o autor, dizendo que Glória não era só o nome do bairro, mas da ladeira e do edifício em que ele moraria.

Então em uma exposição organizada por seu chefe do museu, Benjamim vê uma mulher que ele reconhece como sendo sua vizinha. Encantado por sua beleza, ele passa a circular pelo prédio na tentativa de encontrá-la. Sem êxito, decide procurá-la nos fóruns sobre arte na internet e acaba no Café Aleph, um local virtual em que as pessoas usam nomes importantes da cultura para serem identificadas. Lá é possível presenciar um bate-papo entre Julio Cortázar, visconde de Taunay e a sóror Juana Inés de la Cruz e acompanhar a conversa entre Oscar Wilde (o blogueiro de Mato Grosso do Sul) e Mário de Andrade (estudante de letras de Juiz de Fora). Benjamim batizou-se como Hecateu de Mileto, o logógrafo e não demorou muito para que se tornasse uma celebridade na comunidade virtual:

“Hecateu se tornou unanimidade entre os frequentadores do Café Aleph. Wallace Stevens e Ernest Hemingway, Dante e o conde Ugolino, Noel Rosa e Wilson Batista, todos o tratavam com uma grã-fina ironia, o que naquele lugar era sinal de estima e respeito. Quando não estava presente, falavam dele como se de uma lenda: citavam suas máximas, louvavam seu comportamento inusitado, irmanavam-no aos grandes humoristas da história”. Posição 1090.

Nessa mesma época, Abel retorna ao Brasil casado com uma americana da igreja neopentecostal e decide fundar uma igreja em Santa Maria Madalena, onde vive D. Letícia. Com o falecimento da tia-avó, ele herda seus bens sob a promessa de organizar e publicar seu livro chamado  “Breve e muito concisa história da família Costa e Oliveira”, que relacionava os nomes e a causa mortis de todos os parentes. Havia ainda uma parte  que D. Letícia chamava de teoria geral do desgosto:

“…teoria geral do desgosto, sua suposta missão de vida, que classificaria todos os tipos de desgosto, seus sintomas e paliativos, além de explicar por que essa epidemia, já quase erradicada no país desde o condoído século XIX, ainda corria larga no sangue dos Costa e Oliveira, matando com dó, mas sem piedade”. Posição 644.

Enquanto trabalhava nos manuscritos de D. Letícia, Abel acaba sendo influenciado pelas ideias dela e passa a pregá-las no meio da rua, já que sua Igreja Global em Cristo ainda não estava pronta. Ele se torna um sucesso depois que seus vídeos viralizam. Sua nova missão agora era combater a epidemia do desgosto, o riso seria sua arma e seu slogan, as últimas palavras de D. Letícia: “Todo mundo no mundo é um Costa e Oliveira”.

Há muito conteúdo nestas pouco mais de 200 páginas e eu poderia continar falando sobre Glória por horas, mas acho melhor parar por aqui antes que eu revele algo que não devo. A escrita de Heringer é fluida, agradável, engraçada e ao mesmo tempo carregada de erudição e amplo significado. Dessa forma, é um livro para muita discussão.

Comparado por muitos a Machado de Assis, pela fina ironia e tragicomédia, Heringer em sua obra fala sobre questões tristes e sérias como identidade, adequação e, claro, desgostos. Infelizmente o promissor autor faleceu em 2018. Não se sabe ao certo o que houve, mas muitos acreditam que ele tenha se matado. Talvez tenha morrido de desgosto e daí sua assinatura no prólogo e no epílogo do livro já davam a pista, ele também era um Costa e Oliveira.

Glória

 

Glória
Victor Heringer
São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
248 páginas – E-book

As várias idades de uma mulher

Poderiam ser os números da imagem em destaque. Mas foram escolhidos outros. Oito, 17, 18, 28, 37, 48, 49, 50 e 52 são os números que aparecem na capa do livro O peso do pássaro morto da escritora paulista Aline Bei e que se referem às idades em que acontecimentos marcantes influenciaram a vida da protagonista.

A história dessa narradora anônima começa aos oito anos de idade. Entre brincadeiras, escola e idas ao benzedor “seu Luís”, a menina descobre a amizade, o amor e a perda. Apesar da ingenuidade e das imagens do universo infantil, percebemos o fim da inocência e a desilusão que se perpetuarão ao longo da vida dela e que já se mostram revelados no título da sua redação escolar “A cura não existe”. O ponto de partida é a perda da melhor amiga, que marcará tantas outras perdas:

“mas não era
Tempo,
o problema foi a perda
da parte
de mim que
acreditava, vazou no banho um dia
pelo ralo,
escorreu e a água rápida mandou pro cano que levou
pro rio.” (p.33) – Aos 8 anos

Temas como morte, abuso, violência, suicídio, vergonha, sonhos desfeitos, esperança roubada, solidão e distanciamento mostram uma visão melancólica e por vezes amarga da vida, mas em nenhum momento menos verdadeira, revelando tudo aquilo que na maioria das vezes não é revelado; falando o que geralmente é silenciado. É um livro profundo, triste, sobre perdas que parecem não só se avolumar, mas trazer consequências ao longo da vida da protagonista:

“eu não queria chorar,
estava odiando não conseguir parar de chorar
como tudo, também não quero lembrar e de
repente
já estou lembrando,
vou perder o ônibus pro trabalho
comendo devagar assim e
chorando, meu chefe vai dizer:

– isso são horas?

são muitas
as horas
na mesa
de trabalho e o mundo lá fora, esperando, tem o
que no mundo
quando há tempo pra ver?
quando eu tenho tempo pra ver, nada
acontece no banco
da praça, ali
tudo escorre e
tudo é perda
mesmo quando estou fazendo
o que imaginei que gostaria de estar fazendo,
mas ao fazer bate aquela sensação esquisita
de ainda estar viva justamente nesse ano,
exatamente nesse corpo que sou eu, as
pessoas
sabem meu nome, me chamam,
então eu existo ao mesmo tempo que sou
invisível na multidão.” (p.78) Aos 28 anos

A autora, vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura 2018 (melhor livro do ano na categoria estreante), tem uma prosa não convencional, que lembra a linguagem poética com suas quebras, recuos e pausas. A escolha das palavras e das figuras de linguagem é outro recurso que Aline utiliza para produzir belas imagens poéticas e para mostrar o amadurecimento da personagem, a princípio com a leveza da criança, depois com o peso das perdas na velhice. O resultado é uma narrativa fluida, beirando a oralidade, sem deixar de ser marcante.

O peso do pássaro morto é um livro notável, com passagens cuja beleza é capaz de nos ferir:

“ – não me importo – eu disse pra ele – que seja breve o
nosso encontro
porque no tempo da minha
memória
somos pra sempre. não existe morrer dentro, é como
uma canção.
as canções não morrem nunca porque elas moram
dentro das pessoas que gostam delas…” (p.112) – Aos 37 anos

E se realmente não existe cura para tudo, há pelos menos boas histórias que vêm com o sofrimento. Essa é certamente uma delas.

 
O peso do pássaro morto

O peso do pássaro morto
Aline Bei
São Paulo: Editora Nós, 2017
168 páginas