Esta não é uma história de amor

Quando a protagonista do livro Um amor, da escritora espanhola, Sara Mesa, decide se refugiar em La Escapa – um vilarejo rural onde ela não conhecia ninguém e por isso achou que seria o local ideal para obter o controle sobre seu destino –, ela acabou sendo surpreendida, pois a verdade é que nem mesmo no isolamento somos capazes de nos blindar das circunstâncias da vida.

Considerado o melhor romance de 2020 pelos periódicos “El País” e “La Vanguardia”, Um amor conta a história da tradutora Natalia, que após uma atitude impensada e vergonhosa no trabalho, aluga uma pequena casa longe da cidade, na tentativa de deixar os problemas para trás e começar uma vida nova.

Apesar de ser bem recebida pelos habitantes do vilarejo, Nat não deixa de ser vista com desconfiança, já que veio sozinha, aluga uma casa pobre e adota um cão considerado por todos como problemático. Não demora, entretanto, para ela perceber que a casa escondia goteiras e outros problemas; o cachorro era indócil e a comunidade, aparentemente amigável, era na verdade intolerante, opressiva e preconceituosa.

Além disso, Nat será obrigada na convivência com três homens diferentes – o proprietário da casa explorador; o vizinho prestativo Píter e o misterioso Andreas, conhecido por Alemão, que se oferece para consertar o telhado da casa em troca de um favor que abalará o mundo dela – a enfrentar seus próprios medos, inseguranças, preconceitos, moralidade, desejos, e não poderá mais fugir ou esperar para tomar algumas atitudes, como estava acostumada a fazer:

“É melhor não pensar, mas os pensamentos chegam e deslizam através dela, se entrelaçam. Tenta fazê-los sair na mesma velocidade com que entram, mas eles se acumulam em seu interior, um pensamento sobre o outro. Todo esse empenho – esforçar-se para que entrem e saiam e não se acumulem – já é em si mesmo um pensamento muito intenso para sua cabeça.

“É melhor não pensar, mas os pensamentos chegam e deslizam através dela, se entrelaçam. Tenta fazê-los sair na mesma velocidade com que entram, mas eles se acumulam em seu interior, um pensamento sobre o outro. Todo esse empenho – esforçar-se para que entrem e saiam e não se acumulem – já é em si mesmo um pensamento muito intenso para sua cabeça.
Quando conseguir o cachorro, será mais fácil.
Quando organizar suas coisas e arrumar a mesa e tornar decente o terreno que rodeia a casa. Quando regar – como tudo está seco! – e limpar – quanto descuido! Quando refrescar.
Será muito melhor quando refrescar”. (p. 7)

Como um fogo lento e crescente, a história se torna inquietante a cada página, revelando tensão, ambiguidade, simbolismos, nuances, mistérios e angústia ao longo da leitura. Apesar de falar sobre relações amorosas, a abordagem não tem nada de romântica, sendo um meio para tratar sobre a solidão, o ciúme, a individualidade a a dificuldade de se manter vínculos, tão presentes no mundo atual.

Em uma passagem, a autora, por meio da análise de Nat sobre sua profissão, associa a própria dificuldade de se encontrar as palavras certas às escolhas que fazemos na vida:

“ É o calor, a solidão, a falta de confiança, o medo do fracasso? As palavras que outra pessoa escreveu antes dela se impõem, palavras escolhidas com cuidado, selecionadas dentre todas as possíveis, ordenadas de uma única maneira entre a infinidade de combinações descartadas. Se quer traduzir bem – e ela quer –, deve levar em consideração cada uma dessas escolhas. Mas pensar assim é chegar à exaustão e à paralisia. Ao esmiuçar a linguagem com esse nível de consciência, Nat a despoja de significado. Cada palavra se torna uma inimiga, e traduzir é a coisa mais próxima de duelar com uma versão prévia, e melhor, de seu texto. Avança tão devagar que se desespera. É o calor, a solidão, a falta de confiança, o medo? Ou é, simplesmente – e ela deveria admiti-lo –, sua inépcia, sua falta de jeito?” (p. 23)

Este livro foi adaptado para o filme homônimo dirigido por Isabel Coixet e lançado em novembro de 2023. Optei por não colocar o trailer aqui, pois achei que ele revela muito do enredo. A diretora é a mesma de outra adaptação, A livraria, filme de 2017.

Com um novo ano batendo a nossa porta, é inevitável não pensarmos no que nos espera, mas devemos saber que a mudança nunca vem se não estivermos dispostos a realmente mudar. E às vezes, por mais que a gente consiga ver através da janela, protegidos e a certa distância, é preciso abri-la para sentir o que há do lado de fora.

Que 2024 seja um ano que tenhamos coragem para mudar, amar e viver plenamente! E como não poderia deixar de desejar, que seja mais um ano abençoado e cheio de ótimas leituras para todos nós!

Um amor
Un amor
Sara Mesa
Belo Horizonte: Autêntica Contemporânea, 2023.
Tradução de Silvia Massimini Felix
166 páginas