Faulkner e seu quebra-cabeça literário

Não foi por falta de aviso. Afinal, sempre que se menciona O som e a fúria, do escritor William Faulkner, qualidades como desafiador e difícil tornam-se um lugar-comum. Eu sou mais uma leitora a concordar com tal obviedade. Li e reli as primeiras páginas na tentativa de entender a história, mas percebi que somente reunindo as peças distribuídas nos outros capítulos, seria possível montar esse quebra-cabeça.

E o que de fato faz essa leitura ser tão trabalhosa para o leitor? Seguindo minha experiência, vou arriscar algumas considerações, fazendo uma espécie de percurso literário neste post; não sem antes falar um pouco sobre o enredo. A história trata da decadência da família Compson, que vive no sul dos Estados Unidos no início do século 20. Assim como outras famílias sulistas, os Compsons perderam, após a vitória do norte do país na Guerra de Secessão, sua condição financeira privilegiada, seu prestígio social e, no caso deles, viram-se ainda diante da decadência moral e do desmantelamento das relações familiares.

Não há dúvidas de que seja um grande drama familiar: tem suicídio, gravidez fora do casamento, castração, roubo, retardo mental, amor incestuoso e alcoolismo. Jason Compson III é o patriarca dessa família disfuncional: sua esposa Caroline é hipocondríaca e passa o tempo todo dizendo que vai morrer em breve; seu filho Maury, cujo nome é trocado para Benjamin/Benjy, é um homem de 33 anos com deficiência intelectual; Quentin, o mais velho, vive em conflito; Jason Compson IV é amargo e só pensa em dinheiro, e a filha Candace/Caddy é renegada pela mãe. Há ainda o tio Maury (irmão de Caroline), a empregada negra Delsey e seu filho Luster, e a filha de Caddy, Quentin. A narrativa ocorre em dois tempos: em um fim de semana de Páscoa, em 1928, e em junho de 1910.

Nessa pequena descrição já aparece a primeira dificuldade, há nomes iguais para personagens diferentes. O que faz com que em um momento o autor se refira à Quentin e alguns parágrafos depois, ao Quentin. Sem esquecer do Jason pai e Jason filho e dos Maurys. Mas isso é só o começo. Provavelmente o que mais requer a atenção dos leitores é o entrelaçamento de diferentes tempos e lugares. Faulkner abusa do fluxo de consciência — técnica narrativa em que o tempo emocional invade o tempo cronológico, presente nas obras de Virginia Woolf e James Joyce —, que aqui ganha requintes de dificuldade:

“Esses roceiros coitados nunca viram um automóvel na vida muitos deles toque a buzina Candace para Ela não olhava para mim eles saírem da frente não olhava para mim seu pai não ia gostar nem um pouco se você machucasse alguém sabe acho que seu pai agora vai ter que comprar um automóvel estou quase achando que não foi uma boa ideia você vir nele Herbert eu me diverti muito andando nele é claro temos a carruagem mas acontece muito de eu querer sair e aí o Sr. Compson mandou os negros fazerem alguma coisa que valeria a minha vida interromper ele insiste que o Roskus está à minha disposição o tempo todo […]”. (p.97)

A narrativa como um todo é fragmentada, contribuindo para isso também o fato de serem quatro narradores diferentes. O primeiro deles é Benjy, cuja incapacidade cognitiva faz com que se comunique apenas por grunhidos e choro. No entanto, sua sensibilidade o torna capaz de pressentir cada um dos desastres que levarão a família à ruína. Ele é o grande anunciador da história, porém, de forma desordenada, misturando as impressões do presente às lembranças do passado, e sua total incompreensão das circunstâncias. Ele relata o que vê, ouve e sente (aliás, o cheiro para ele é sempre revelador), mas é incapaz de ordenar os fatos e refletir sobre os acontecimentos. Benjy é o idiota por trás do título da obra, retirada de uma frase de Macbeth, de William Shakespeare: “A vida é só uma sombra […]; é uma história que conta o idiota, todo som e fúria, sem querer dizer nada” (na tradução de Barbara Heliodora).


O segundo narrador é Quentin, o filho mais inteligente, em quem os pais depositam sua esperança para mudar o destino dos Compsons. Para que ele estude em Harvard, uma parte da fazenda da família é vendida, justamente a parte de Benjy. É Quentin quem também herda o relógio que pertencera ao pai e ao avô. Ele carrega um peso em suas costas, simbolizado por esse relógio, que mesmo após ser quebrado, continua a marcar o tempo dentro da mente dele. Quentin é atormentado pela culpa e pela vergonha, o que torna sua narrativa mais densa, com muitas reflexões e fluxos de consciência.

O terceiro capítulo é narrado por Jason, em uma época mais recente e de forma mais linear, quando comparado aos outros. Da mesma forma que os outros irmãos, Jason também é obcecado pela irmã Caddy, mas de maneira oposta, pois ele odeia a irmã, a quem culpa pela desgraça da sua vida, assim como a sobrinha Quentin. Por fim, o último capítulo é narrado em terceira pessoa e destaca a empregada Dilsey, que assumia o lado maternal da família, uma vez que a matriarca dos Compsons, Caroline, vivia doente.

Há mais um desafio na leitura: Faulkner escreve com frases longas e muitos adjetivos, alguns em locais inusitados, fazendo com que o leitor tenha de desembaraçar a frase e interpretar seu sentido.

“Aproximaram-se da praça, onde o soldado confederado olhava fixamente com olhos vazios sob a mão de mármore, no vento e na chuva. Luster cresceu mais um pouco em sua própria estima e bateu na imperturbável Queenie com o galho, olhando a sua volta”. (p. 325)

Diante de tantos percalços apontados, é natural que se pense que esta não foi uma leitura aprazível para mim ou que eu não a indique para outros leitores. Absolutamente. Percorrer as páginas de O som e a fúria em busca de seu entendimento, vislumbrar a maneira experimental como a narrativa foi construída e descobrir frases e passagens memoráveis faz com que a experiência de leitura valha cada dificuldade.

Publicado originalmente em 1929, o livro não é só uma história de indivíduos ou de uma sociedade em decadência, mas da persistência do ser humano diante da perda de sua importância, da culpa, do fracasso, do sofrimento, da falta de perspectiva, da solidão. Por meio desses diversos narradores, Faulkner, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1949, ressalta a subjetividade da memória, as limitações do conhecimento e a dificuldade de entender o ponto de vista do outro. Finalizo com esta linda frase de Quentin:

“Todos falavam ao mesmo tempo, com vozes insistentes e contraditórias e impacientes, fazendo da irrealidade uma possibilidade, depois uma probabilidade, e por fim um fato incontestável, como costumam fazer as pessoas quando seus desejos se transformam em palavras”. (p. 121)

Algumas notas: o apêndice da edição da Companhia das Letras traz o texto “Compson: 1699-1945”, publicado em 1946 em uma antologia de Faulkner e incluído, sob recomendação do autor, nas edições posteriores da obra. O texto é uma espécie de amarração da história, contando o que aconteceu à família nos anos posteriores. Em Absalão, Absalão!, o inteligente e problemático Quentin é o narrador que contará a história de seu colega de quarto em Harvard.

O som e a fúria
The sound and the fury
William Faulkner
Tradução: Paulo Henriques Britto
São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
375 páginas