Foi essa a dúvida que me levou a Laços, do escritor italiano Domenico Starnone. Publicado em 2014, eu ouvira comentários de que o livro era o contraponto masculino para o arrebatador Dias de abandono (2002), da Elena Ferrante (já tem post aqui). O tema da esposa abandonada, porém, não era a única coisa que ligava o autor à sua conterrânea; havia ainda o fato de ser casado com Anita Raja, tradutora que teve seu nome envolvido nas especulações sobre a real identidade de Ferrante. Parecia que os laços entre as duas obras eram mais fortes do que eu imaginara…
O enredo gira em torno de Aldo Minori, que conhecemos por diferentes vozes (dele mesmo, da esposa e da filha), e as consequências advindas com sua decisão de abandonar a família por causa de outra mulher. Enquanto na obra de Ferrante é somente Olga que relata seu drama em primeira pessoa, em Laços há três narradores responsáveis por cada uma das três partes que compõem o livro.
A narrativa da primeira parte é na forma de cartas, escritas pela esposa abandonada para o marido durante o período da separação (de 1974 a 1978). Sabemos pelo seu relato que Aldo, então com 34 anos de idade, deixara-a com os filhos Sandro e Anna (de 9 e 5 anos, respectivamente) em Nápoles, para viver em Roma com Lídia, uma estudante de 19 anos que ele conhecera enquanto lecionava na universidade. A trama começa com a tentativa de Vanda de entender o que acontecera ao marido e seu desespero para ter a família de volta:
“Conheço você, sei que é uma boa pessoa. Mas, por favor, assim que ler esta carta, volte para casa. Ou, se ainda não se sentir à vontade, me escreva explicando o que está acontecendo. Vou tentar entender, prometo. Já está claro para mim que você precisa de mais liberdade, e é justo, eu e seus filhos vamos tentar sobrecarregá-lo o mínimo possível”. (Posição 144)
Vanda, assim como a protagonista de Dias de abandono, passa pelas várias fases da separação, só que de maneira menos clara e intensa. A busca pelo motivo, a revolta, as chantagens emocionais, a vingança, a depressão estão todas lá, até finalmente chegar à aceitação:
“Nossa separação foi de fato sacramentada pelo registro civil e pela declaração de custódia que você assinou. Não vejo urgência para outras iniciativas.
Recebo pontualmente o dinheito que você me manda, embora eu nunca tenha pedido nada, nem para mim nem para meus filhos”. (Posição 312)
A segunda parte (a mais extensa) é narrada pelo próprio Aldo e começa décadas depois do momento em que ele deixara a família. Aos 72 anos, Aldo está prestes a sair de férias em uma viagem à praia com Vanda, com quem convive há 52 anos. Na mesma casa, vive ainda o gato Labes. Os filhos têm suas próprias vidas: Sandro teve vários relacionamentos que resultaram em quatro filhos e Anna não se casou. Ambos também foram viajar, o primeiro para visitar os sogros na Provença e a outra para as ilhas gregas.
No entanto, quando retorna à casa, o casal percebe que tudo está fora do lugar e o gato desaparecera. Abalados, Aldo sugere que Vanda descanse enquanto ele arruma a bagunça. É durante esse processo que ele revê parte da sua vida: alguns escritos da época em que era um autor televisivo de sucesso, livros com marcações que já não lhe diziam nada, fotos que lhe lembraram a época em que conhecera Vanda e por fim, as cartas que ela escrevera quando se separaram:
“As cartas conservavam os vestígios de uma dor tão forte que, se liberada, poderia atravessar o cômodo, se espalhar pela sala, irromper além das portas fechadas e voltar a se apossar de Vanda, sacudindo-a e arrancando-a do sono, impelindo-a a gritar ou cantar até explodir”. (Posição 745)
Temendo ressucitar os fantasmas do passado, Aldo se livra das cartas para que Vanda não as veja. Aproveita também para verificar se o cubo azul que comprara em Praga permanece em seu escritório, pois em seu interior, ele escondia alguns de seus segredos.
Há várias perguntas que o autor lança ao longo da narrativa: o que havia dentro do cubo? quem invadiu a casa? onde fora parar o gato? A terceira parte, narrada pela filha do casal procura responder todas as questões e entender o relacionamento dos pais. E percebemos que mesmo com o retorno de Aldo, as consequências daquele ato influenciaram a vida de todos e permaneceram até o presente.
O livro fala sobre família, casamento, separação, traumas, amor, solidão e a passagem do tempo. É uma prosa leve e de leitura rápida, mas que não tem o efeito dilacerante da escrita de Ferrante. Talvez porque a protagonista de Dias de abandono não tivera medo de se expor, de revelar sua insanidade e sua fragilidade, o que não ocorreu com Aldo. Ele tem dificuldade de admitir seus sentimentos: desde o amor por Lídia até de uma certa culpa, que nunca é assumida, colocando a traição como fruto da época de liberação sexual e questionamento das tradições:
“De modo que em pouco tempo, embora eu tivesse uma forte relação com minha mulher e as duas crianças, sofri o fascínio de modos de vida que rompiam programaticamente todos os laços tradicionais.” (Posição 777)
Ou:
“Eu tinha ficado com outra, eu estava com outra, eu estou com outra eram frases que exprimiam liberdade, e não culpa”. (Posição 788)
Aldo nunca conseguiu romper os laços, só conseguiu afrouxá-los, mas será que isso seria suficiente para segurar os sapatos enquanto caminhava? A capa da edição americana (veja abaixo) mostra a possível dificuldade.
Laços
Lacci
Domenico Starnone
São Paulo: Todavia, 2017.
137 páginas (E-book)
Ties
Europa Editions, 2017.