Quem afinal conhece Lupin?

Quem gosta de boas histórias envolvendo investigação policial e mistério já deve ter ouvido falar sobre Arsène Lupin. O personagem, criado por Maurice Leblanc em 1905, tem ganhado popularidade por causa da série da Netflix, Lupin, que estreou no início deste ano. Mas começarei falando sobre os livros — O ladrão de casaca: as primeiras aventuras de Arsène Lupin (1907) e Arsène Lupin contra Herlock Sholmes (1908) — publicados no Brasil pela editora Zahar.

O livro de 1907 é uma compilação com as primeiras nove novelas, publicadas originalmente na revista Je Sais Tout. Maurice Leblanc era autor de romances de costumes antes de receber o convite do editor Pierre Lafitte para produzir uma novela policial, que este publicaria no primeiro número de sua revista. Assim nasceu o personagem Arsène Lupin que, com o sucesso obtido, protagonizou nas décadas posteriores: 15 romances, 38 contos e quatro peças teatrais.

Lupin é ardiloso, cavalheiro, audacioso, simpático, ladrão. Isso mesmo, o protagonista é o bandido da história, diferentemente da maioria das narrativas policiais que tem o detetive como herói. E apesar de sabermos quem é o culpado desde o início, o autor consegue segurar nosso interesse com as situações engendradas por Lupin para conquistar seus objetivos. Além disso, outra peculiaridade do personagem acrescenta mais uma dimensão à história: não sabemos quem é Arsène Lupin! Representado por um homem com cartola e monóculo, ele é na verdade um mestre dos disfarces, por isso nunca sabemos qual nome e identidade ele assumirá no enredo:

“Arsène Lupin entre nós! O escorregadio salteador cujas proezas os jornais vinham noticiando há meses! O enigmático personagem com quem o velho Ganimard, nosso melhor policial, encetara um duelo até a morte, cujas peripécias se desenrolavam de maneira tão pitoresca! Arsène Lupin, o rocambolesco gentleman que só opera em castelos e salões e que, uma noite, após invadir a residência do barão Schormann, partira de mãos vazias e deixara seu cartão, despedindo-se com elegância: ‘Arsène Lupin, o ladrão de casaca, voltará quando a mobília for autêntica’. Arsène Lupin, o homem de mil disfarces, sucessivamente motorista, tenor, bookmaker, rapaz de família, adolescente, idoso, representante comercial marselhês, médico russo, toureiro espanhol!” (O ladrão de casaca, p. 15)

Essa apresentação de Lupin faz parte da primeira história publicada “A detenção de Arsène Lupin”, na qual o famoso ladrão viaja em um transatlântico da linha Havre-Nova York sob falsa identidade. A única informação que se tem é a de que o nome que ele usa começa com R. Isso porque, enquanto o alerta era transmitido por uma espécie de telégrafo, a comunicação fora cortada no exato momento em que o nome seria revelado. Dessa forma, ficamos o tempo todo tentando descobrir quem é Lupin, o que no final acaba sendo surpreendente.

Nas demais novelas de O ladrão de casaca conhecemos um pouco mais sobre Lupin, um gênio do crime para o qual nem as grades de uma prisão são empecilhos para realizar seus feitos. Sempre em seu encalço está o inspetor Ganimard, que a princípio até parece ter uma certa vantagem sobre Arsène, mas que ao longo das tramas reconhece a superioridade do inimigo, o que o faz buscar reforços — a ajuda de um célebre detetive inglês. No último capítulo “Herlock Sholmes chega tarde demais”, temos um embate entre Lupin e Sherlock Holmes, que por não agradar Conan Doyle, teve uma pequena mudança no nome.

Em Arsène Lupin contra Herlock Sholmes há duas histórias: “A mulher loura” e “A lâmpada judaica”. O primeiro caso gira em torno de uma escrivaninha dada por um professor de matemática à sua filha como presente de aniversário. Como se não bastasse a peça ser roubada, há o agravante de que dentro dela havia, inadvertidamente, um bilhete de loteria premiado, colocado lá pela moça ao arrumar a casa. Os capítulos seguintes acrescentam mais elementos ao enredo: a morte de um conde, um diamante azul, uma mulher loira e suspeitos que entram e saem dos lugares sem deixar vestígios. Na dificuldade de conseguir resolver os mistérios, o inspetor Ganimard pede a ajuda do detetive inglês Herlock Sholmes, que virá acompanhado de seu assistente Wilson:

“Afinal, trata-se de Herlock Sholmes, isto é, uma espécie de fenômeno de intuição, observação, clarividência e engenhosidade. É como se a natureza tivesse se divertido em pegar os dois tipos de policial mais extraordinários que a imaginação produziu, o Dupin de Edgar Poe e o Lecoq de Gaboriau, para com eles, à sua maneira, construir um terceiro, ainda mais extraordinário e irreal. E, quando ouvimos a história das façanhas que o celebrizaram no mundo inteiro, na verdade nos perguntamos se ele mesmo, esse Herlock Sholmes, não é um personagem lendário, um herói expelido do cérebro de um grande romancista, de um Conan Doyle, por exemplo”. (Arsène Lupin contra Herlock Sholmes, p. 97)

Nesse confronto entre Lupin e Sholmes, difícil saber quem levará a melhor no final, e para o leitor fica a decisão de que partido tomar.

A série televisiva criada por George Kay e François Uzan é uma livre adaptação dos livros de Maurice Leblanc. Como diz o subtítulo “Dans l’ombre d’Arsène” (Na sombra de Arsène), o enredo tem como protagonista Assane Diop (Omar Sy de Intocáveis), que a exemplo de Lupin, é um ladrão que usa sua inteligência e destreza em assumir inúmeros disfarces para realizar seus planos.

No primeiro episódio, Assane planeja roubar o famoso colar da rainha, durante um leilão no Louvre. Esse colar tem um significado especial para ele, pois seu pai foi preso e acabou se matando após ser acusado de roubo pela família Pellegrini, proprietária da joia e para quem o pai de Assane trabalhava na época. No entanto, após uma revelação, o foco da trama muda para um caso de vingança.

Além de acompanhar a história no momento atual, temos vários episódios do passado de Assane. Lupin é mencionado o tempo todo na série. Das cenas mostrando o livro de Leblanc — que Assane ganhou de presente do pai e que depois ele presentearia o filho Raoul — às observações do detetive Guedira, grande fã do personagem, que tenta convencer seus demais colegas das similaridades entre Lupin e Diop.

São apenas cinco episódios na primeira temporada, mas já há trailer da segunda. Enquanto aguardamos, há novas histórias de Lupin recentemente publicadas no Brasil por outras editoras. Mas para quem quer conhecer as primeiras histórias, indico estas edições da Zahar, lançadas há alguns anos e que contam com as traduções premiadas de Rodrigo Lacerda e André Telles.

Por fim, segue abaixo o link para a playlist do Spotify com a trilha sonora da série, que é deliciosa de se ouvir, começando com o cantor Labi Siffre e muitas músicas francesas na seleção.

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O ladrão de casaca: as primeiras aventuras de Arsène Lupin
Arsène Lupin, gentleman cambrioleur
Maurice Leblanc
Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
278 páginas (livro de bolso)

Arsène Lupin contra Herlock Sholmes
Arsène Lupin contre Herlock Sholmès
Maurice Leblanc
Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
310 páginas (livro de bolso)

Isabel Allende e o colorido das histórias

A escritora chilena Isabel Allende (que na verdade nasceu no Peru, onde sua família vivia na época) obteve reconhecimento já com sua obra de estreia A casa dos espíritos (1982), sucesso de público e crítica — que ganhou uma adaptação para o cinema, igualmente celebrada, em 1993. Eva Luna é o terceiro romance de Allende, publicado em 1987, e assim como os anteriores traz elementos do realismo mágico, a presença de mulheres fortes e a ditadura como pano de fundo.

Como sugere a epígrafe, que faz menção ao clássico As mil e uma noites, Eva pode ser vista como uma Sherazade latina, pois da mesma forma que a outra personagem, ela usa seu talento de contadora de histórias para se manter viva. O nome Eva, aliás, fora dado pela sua mãe para que a filha tivesse vontade de viver, segundo o significado que ela lera em algum livro. E Luna referia-se à tribo ao qual o pai de Eva pertencia: filhos da lua.

Narrada em primeira pessoa, é a própria Eva Luna quem conta sua história, que começa com um breve relato sobre a vida de sua mãe. A órfã Consuelo fora resgatada da selva e cuidada por missionários até que eles decidiram que a garota deveria ir para a cidade, deixando-a em um convento. De lá, a garota foi trabalhar na casa do professor Jones, ajudando as outras empregadas na limpeza e depois tornando-se assistente do patrão, em sua arte de embalsamar cadáveres.

Quando o índio que cuida do jardim é picado por uma cobra, Consuelo decide tratá-lo, só que ao perceber a piora de seu estado e um certo interesse, ela decide justificar seu nome, dando consolo e prazer ao homem, para que partisse feliz para o outro mundo. No entanto, pouco a pouco o índio começa a reagir diante do antídoto administrado por ela “com ternura e entusiasmo” a cada solicitação dele. O índio, enfim, melhora e vai embora, sem saber que gerara um fruto:

“Consuelo não manifestou qualquer emoção. Continuou a trabalhar como sempre, ignorando as náuseas, o peso das pernas e os pontos coloridos que lhe turvavam a vista, sem mencionar o extraordinário medicamento com que salvara o moribundo. Nada falou, nem mesmo quando a barriga começou a crescer, nem quando o professor Jones a chamou para dar-lhe um purgante, certo de que aquele inchaço era produto de algum problema digestivo, nem tampouco falou quando no devido tempo deu à luz”. (p.26)

Eva Luna cresceu ao lado da mãe na casa do professor, ajudando-a com os afazeres domésticos e ouvindo histórias sobre um mundo inventado:

“As palavras são grátis, costumava dizer, e apropriava-se delas, eram todas suas. Semeou em minha cabeça a ideia de que a realidade não é apenas como se percebe na superfície, possuindo também uma dimensão mágica e, tendo-se vontade, é legítimo exagerá-la e dar-lhe cor, para que a passagem por esta vida não se torne tão tediosa”. (p.28)

Paralelamente à história de Eva Luna, conhecemos a de Rolf Carlé, futuro cineasta, que nasceu oito anos antes de Eva em uma pequena cidade ao norte da Áustria, filho caçula de Lukas Carlé, o mais temido professor do liceu. Na época, a Europa enfrentava a Segunda Grande Guerra, para a qual Lukas fora convocado e depois desertara, voltando ainda mais cruel e violento para a família:

“A partir desta noite, a vida de Rolf mudou por completo. Apesar da guerra e de todas as privações que suportara, ele não conhecia verdadeiramente o medo. Lukas Carlé ensinou-lhe”. (p.41)

As dificuldades de Rolf fizeram com que viesse para a América do Sul, para viver com um parente de sua mãe. Da mesma maneira, a vida de Eva Luna teve uma série de adversidades. Após a morte da mãe, ela ficou sob os cuidados da sua madrinha — a cozinheira da casa do professor Jones que ajudara a mãe na hora do parto — e que assumira a responsabilidade com medo de ser castigada no dia do Juízo Final. De acordo com suas crenças, abandonar um afilhado era pior do que abandonar um filho:

“O cérebro da madrinha estava um pouco transtornado por causa do rum. Ela acreditava nos santos católicos, em outros de origem africana e em vários mais de sua invenção. Levantara um pequeno altar em seu quarto, onde se alinhavam ao lado da água-benta os fetiches do vodu, a fotografia de seu falecido pai e um busto que ela julgava ser de São Cristóvão, mas que depois descobri ser de Beethoven, embora jamais me atrevesse a corrigir tal erro, porque era o mais milagroso do seu altar”. (p.51)

Com a morte do professor, elas são obrigadas a arranjar um novo emprego, então Eva Luna, aos 7 anos, começa a trabalhar para ganhar a vida. São vários empregos, muitas fugas, patrões bizarros e personagens tão diversos como refugiados de guerra, um árabe bondoso com lábio leporino, um bebê com duas cabeças, uma mulher que enlouquece por causa de um homem, um transsexual, e um garoto de rua chamado Huberto Naranjo, a quem Eva considera como sendo seu primeiro amor e que se transforma em um dos principais líderes do movimento guerrilheiro.

O romance é uma miríade de personagens, questões, paisagens, culturas, talvez representando a própria diversidade latino-americana. Sem contar a narrativa que mistura drama, humor, paixão, romance e luta. No entanto, o livro tem alguns pontos que não funcionaram para mim, sendo que o principal está justamente relacionado à essa profusão de situações relatadas. Como em uma receita gastronômica, o excesso de temperos às vezes faz com que fique difícil identificar o sabor dos alimentos. Mas não há como negar o poder da imaginação de Isabel Allende, assim como a qualidade da escrita, o enredo rico e os personagens interessantes.

O que mais me marcou, porém, foi a mensagem de como é possível transformar a realidade com histórias. Em uma passagem em que Eva Luna conversa com Rolf sobre o passado de ambos, sabemos como isso acontece:

“Contei minha infância, quando trabalhara em casas alheias, de Elvira salva das águas, de Riad Halabí e outros fatos, mas omiti Huberto Naranjo, que nunca mencionava, pelo firme hábito da clandestinidade. Por sua vez, Rolf Carlé me contou da fome da guerra, do desaparecimento de seu irmão Jochen, de seu pai enforcado na floresta, do campo de prisioneiros.
— É muito estranho, nunca tinha expressado essas coisas em palavras.
— Por quê?
— Não sei, parece que são segredos. São a parte mais sombria de meu passado — disse, e depois ficou muito tempo em silêncio, com os olhos fixos no mar e outra expressão nos olhos cinzentos.
— E quanto a Katharina?
— Teve uma morte triste, sozinha em um hospital.
— Está bem, ela morreu, mas não como você diz. Vamos procurar um bom final para ela.
[…]
— E minha mãe, também tem um bom destino para ela? — perguntou Rolf Carlé, com a voz alquebrada.
— Tenho. Do cemitério, ela voltou para casa e viu que os vizinhos haviam posto flores em todos os jarros, para que se sentisse acompanhada. A segunda-feira era dia de fazer pão, e ela tirou o vestido de sair, vestiu o avental e começou a preparar a mesa. Sentia-se tranquila, porque todos os seus filhos estavam bem. Jochen encontrara uma boa mulher e formara família em algum lugar do mundo, Rolf fazia sua vida na América, e agora Katharina, finalmente livre das amarras físicas, podia voar à vontade”. (p. 248).

Isabel Allende mostra que das histórias tristes e cinzentas é possível fazer surgir uma outra, para expurgar fantasmas (foi com essa ideia que ela escreveu A casa dos espíritos, deixando para trás a ditadura de Pinochet), aliviar a alma e dar mais cor à vida!

Para quem quiser conhecer outras histórias envolvendo os personagens deste livro, foi publicado, em 1989, Contos de Eva Luna.

Eva Luna
Eva Luna
Isabel Allende
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019.
293 páginas