Isabel Allende e o colorido das histórias

A escritora chilena Isabel Allende (que na verdade nasceu no Peru, onde sua família vivia na época) obteve reconhecimento já com sua obra de estreia A casa dos espíritos (1982), sucesso de público e crítica — que ganhou uma adaptação para o cinema, igualmente celebrada, em 1993. Eva Luna é o terceiro romance de Allende, publicado em 1987, e assim como os anteriores traz elementos do realismo mágico, a presença de mulheres fortes e a ditadura como pano de fundo.

Como sugere a epígrafe, que faz menção ao clássico As mil e uma noites, Eva pode ser vista como uma Sherazade latina, pois da mesma forma que a outra personagem, ela usa seu talento de contadora de histórias para se manter viva. O nome Eva, aliás, fora dado pela sua mãe para que a filha tivesse vontade de viver, segundo o significado que ela lera em algum livro. E Luna referia-se à tribo ao qual o pai de Eva pertencia: filhos da lua.

Narrada em primeira pessoa, é a própria Eva Luna quem conta sua história, que começa com um breve relato sobre a vida de sua mãe. A órfã Consuelo fora resgatada da selva e cuidada por missionários até que eles decidiram que a garota deveria ir para a cidade, deixando-a em um convento. De lá, a garota foi trabalhar na casa do professor Jones, ajudando as outras empregadas na limpeza e depois tornando-se assistente do patrão, em sua arte de embalsamar cadáveres.

Quando o índio que cuida do jardim é picado por uma cobra, Consuelo decide tratá-lo, só que ao perceber a piora de seu estado e um certo interesse, ela decide justificar seu nome, dando consolo e prazer ao homem, para que partisse feliz para o outro mundo. No entanto, pouco a pouco o índio começa a reagir diante do antídoto administrado por ela “com ternura e entusiasmo” a cada solicitação dele. O índio, enfim, melhora e vai embora, sem saber que gerara um fruto:

“Consuelo não manifestou qualquer emoção. Continuou a trabalhar como sempre, ignorando as náuseas, o peso das pernas e os pontos coloridos que lhe turvavam a vista, sem mencionar o extraordinário medicamento com que salvara o moribundo. Nada falou, nem mesmo quando a barriga começou a crescer, nem quando o professor Jones a chamou para dar-lhe um purgante, certo de que aquele inchaço era produto de algum problema digestivo, nem tampouco falou quando no devido tempo deu à luz”. (p.26)

Eva Luna cresceu ao lado da mãe na casa do professor, ajudando-a com os afazeres domésticos e ouvindo histórias sobre um mundo inventado:

“As palavras são grátis, costumava dizer, e apropriava-se delas, eram todas suas. Semeou em minha cabeça a ideia de que a realidade não é apenas como se percebe na superfície, possuindo também uma dimensão mágica e, tendo-se vontade, é legítimo exagerá-la e dar-lhe cor, para que a passagem por esta vida não se torne tão tediosa”. (p.28)

Paralelamente à história de Eva Luna, conhecemos a de Rolf Carlé, futuro cineasta, que nasceu oito anos antes de Eva em uma pequena cidade ao norte da Áustria, filho caçula de Lukas Carlé, o mais temido professor do liceu. Na época, a Europa enfrentava a Segunda Grande Guerra, para a qual Lukas fora convocado e depois desertara, voltando ainda mais cruel e violento para a família:

“A partir desta noite, a vida de Rolf mudou por completo. Apesar da guerra e de todas as privações que suportara, ele não conhecia verdadeiramente o medo. Lukas Carlé ensinou-lhe”. (p.41)

As dificuldades de Rolf fizeram com que viesse para a América do Sul, para viver com um parente de sua mãe. Da mesma maneira, a vida de Eva Luna teve uma série de adversidades. Após a morte da mãe, ela ficou sob os cuidados da sua madrinha — a cozinheira da casa do professor Jones que ajudara a mãe na hora do parto — e que assumira a responsabilidade com medo de ser castigada no dia do Juízo Final. De acordo com suas crenças, abandonar um afilhado era pior do que abandonar um filho:

“O cérebro da madrinha estava um pouco transtornado por causa do rum. Ela acreditava nos santos católicos, em outros de origem africana e em vários mais de sua invenção. Levantara um pequeno altar em seu quarto, onde se alinhavam ao lado da água-benta os fetiches do vodu, a fotografia de seu falecido pai e um busto que ela julgava ser de São Cristóvão, mas que depois descobri ser de Beethoven, embora jamais me atrevesse a corrigir tal erro, porque era o mais milagroso do seu altar”. (p.51)

Com a morte do professor, elas são obrigadas a arranjar um novo emprego, então Eva Luna, aos 7 anos, começa a trabalhar para ganhar a vida. São vários empregos, muitas fugas, patrões bizarros e personagens tão diversos como refugiados de guerra, um árabe bondoso com lábio leporino, um bebê com duas cabeças, uma mulher que enlouquece por causa de um homem, um transsexual, e um garoto de rua chamado Huberto Naranjo, a quem Eva considera como sendo seu primeiro amor e que se transforma em um dos principais líderes do movimento guerrilheiro.

O romance é uma miríade de personagens, questões, paisagens, culturas, talvez representando a própria diversidade latino-americana. Sem contar a narrativa que mistura drama, humor, paixão, romance e luta. No entanto, o livro tem alguns pontos que não funcionaram para mim, sendo que o principal está justamente relacionado à essa profusão de situações relatadas. Como em uma receita gastronômica, o excesso de temperos às vezes faz com que fique difícil identificar o sabor dos alimentos. Mas não há como negar o poder da imaginação de Isabel Allende, assim como a qualidade da escrita, o enredo rico e os personagens interessantes.

O que mais me marcou, porém, foi a mensagem de como é possível transformar a realidade com histórias. Em uma passagem em que Eva Luna conversa com Rolf sobre o passado de ambos, sabemos como isso acontece:

“Contei minha infância, quando trabalhara em casas alheias, de Elvira salva das águas, de Riad Halabí e outros fatos, mas omiti Huberto Naranjo, que nunca mencionava, pelo firme hábito da clandestinidade. Por sua vez, Rolf Carlé me contou da fome da guerra, do desaparecimento de seu irmão Jochen, de seu pai enforcado na floresta, do campo de prisioneiros.
— É muito estranho, nunca tinha expressado essas coisas em palavras.
— Por quê?
— Não sei, parece que são segredos. São a parte mais sombria de meu passado — disse, e depois ficou muito tempo em silêncio, com os olhos fixos no mar e outra expressão nos olhos cinzentos.
— E quanto a Katharina?
— Teve uma morte triste, sozinha em um hospital.
— Está bem, ela morreu, mas não como você diz. Vamos procurar um bom final para ela.
[…]
— E minha mãe, também tem um bom destino para ela? — perguntou Rolf Carlé, com a voz alquebrada.
— Tenho. Do cemitério, ela voltou para casa e viu que os vizinhos haviam posto flores em todos os jarros, para que se sentisse acompanhada. A segunda-feira era dia de fazer pão, e ela tirou o vestido de sair, vestiu o avental e começou a preparar a mesa. Sentia-se tranquila, porque todos os seus filhos estavam bem. Jochen encontrara uma boa mulher e formara família em algum lugar do mundo, Rolf fazia sua vida na América, e agora Katharina, finalmente livre das amarras físicas, podia voar à vontade”. (p. 248).

Isabel Allende mostra que das histórias tristes e cinzentas é possível fazer surgir uma outra, para expurgar fantasmas (foi com essa ideia que ela escreveu A casa dos espíritos, deixando para trás a ditadura de Pinochet), aliviar a alma e dar mais cor à vida!

Para quem quiser conhecer outras histórias envolvendo os personagens deste livro, foi publicado, em 1989, Contos de Eva Luna.

Eva Luna
Eva Luna
Isabel Allende
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019.
293 páginas

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