Novembro Gaiman

Novembro é o mês de aniversário de Neil Gaiman, como já mencionei em outro post, e apesar de nunca faltarem motivos para ler seus livros, aproveitei a oportunidade para colocar Belas maldições: as justas e precisas profecias de Agnes Nutter, bruxa entre as minhas leituras do mês. Escrito em conjunto com Terry Pratchett, Good Omens, como é conhecido no idioma original, é o título que aparece na capa da nova edição, ilustrada com os personagens da série de mesmo nome, lançada neste ano pela Amazon Prime.

Publicado originalmente em 1990, o livro parece mais atual do que nunca, não só pela ameaça dos constantes conflitos à paz mundial, mas pelas mudanças climáticas e pela destruição da natureza, que só têm crescido ao longo das últimas décadas. O que nos dá a impressão de que realmente estamos caminhando para o fim dos tempos. Entretanto, mesmo diante desse cenário tão catastrófico, esta leitura irá provocar muitos risos.

O enredo tem início logo após a criação do mundo, com a conversa entre o demônio Crawly e o anjo Aziraphale sobre a expulsão de Eva e Adão do paraíso, provocada por Crawly que se disfarçara de serpente:

“Só me disseram: suba lá e crie alguma confusão — disse a serpente, cujo nome era Crawly, de ‘rastejante’, embora estivesse pensando em mudá-lo. Rastejar, concluíra, não combinava em nada com ele”. (Posição 56)

A história então salta para onze anos antes da data em que terá início o Armagedom. Os anjos caídos Hastur e Ligur encontram Anthony J. Crowley (ex-Crawly) para uma espécie de prestação de contas entre eles. Hastur começa dizendo que tentara um padre, Ligur diz ter corrompido um político e Crowley, que diferentemente dos outros demônios estava vivendo há milênios entre os humanos, vangloriou-se por ter paralisado todos os sistemas de telefone celular de Londres por 45 minutos.  Por serem mentalidades do século XIV, Hastur e Ligur, que já haviam se surpreendido com a chegada de Crowley em um Bentley e o fato de nunca tirar seus óculos escuros, não entenderam o significado, pois segundo Crowley, estavam acostumados ao método artesanal de tentar apenas uma alma, o que seria inviável com 5 bilhões de pessoas atualmente:

“O que poderia lhes dizer? Que vinte mil pessoas ficaram bravas pra cacete? Que era possível ouvir as artérias se entupindo por toda a cidade? E que então essas pessoas voltavam e descontavam tudo em suas secretárias ou guardas de trânsito ou o que quer que fosse, e que eles, por sua vez, descontavam isso tudo em outras pessoas? Em todos os tipos de pequenos modos de vingança em que — e aqui vinha a parte boa — eles mesmos pensavam. Pelo resto do dia. O efeito dominó era incalculável. Milhares e milhares de almas recebiam uma pequena pátina de sujeira, e mal era preciso erguer um dedo”. (Posição 234)

Na sequência, Crowley recebe uma cesta e uma incumbência: deveria trocar o bebê que estava lá dentro – o Anticristo – com o filho de Thaddeus J. Dowling, membro da embaixada norte-americana. Ele segue até o hospital gerido por freiras satanistas da Ordem Faladora de Santa Beryl, onde o casal Young também acabara de ter um filho, a quem chamarão de Adam.  O Anticristo é recebido pela irmã Maria Loquaz, que faz a troca dos bebês, mas não percebe que o Filho de Satã e Senhor das Trevas não fora para o quarto da esposa do adido cultural americano.

A chegada do Anticristo na Terra era o sinal de que em breve haveria a luta final entre Céu e Inferno. Para Crowley, no entanto, era o fim de uma vida de prazeres mundanos. Ele gostava da tarefa de infernizar os humanos, que sempre deixavam o seu trabalho mais fácil:

“Nasciam num mundo que estava contra eles de um milhão de formas sutis e dedicavam a maior parte de suas energias a torná-lo ainda pior. Ao longo dos anos, Crowley achara cada vez mais difícil encontrar algo de demoníaco a fazer que se destacasse contra o pano de fundo natural da maldade generalizada (…) Não há nada que possamos fazer que eles já não façam por conta própria, e eles fazem coisas que nós sequer pensamos, frequentemente envolvendo eletrodos”. (Posição 583- 586)

Da mesma forma que Crowley, Aziraphale estava vivendo há mais de 4 mil anos entre os humanos, mas ao contrário de um apartamento sofisticado e um estilo de vida moderno, ele era um negociante de livros raros e gostava de bons restaurantes. Inimigos há 6 mil anos, os dois acabaram tornando-se amigos e, diante do anúncio do fim do mundo, decidiram unir forças para mudar o plano divino.  A ideia era fazer com que o Anticristo se tornasse um garoto normal, nem bom, nem mal. De acordo com a concepção deles, o nascimento era só o começo, a criação era o que realmente importava, haja vista o caso de Satã, nascido anjo, mas que virara o grande adversário. Eles só teriam que acompanhar o crescimento da criança até o aniversário de 11 anos, quando esta receberia de presente o cão demoníaco, sinalizando o começo do Armagedom. Ambos colocaram suas equipes para trabalhar na formação de Warlock Dowling e quando finalmente chegara a esperada data, o garoto parecia mais normal do que o proposto, só que ele não ganhara nenhum cão.

Crowley recebe a notícia do inferno de que o cão fora entregue como o planejado, o que só poderia significar que ele e Aziraphale estavam com o garoto errado. Então eles decidem voltar ao hospital das irmãs da Ordem, mas descobrem que não existe mais, e que agora é um campo de treinamento para empresas dirigido por Mary Hodges (ex-Maria Loquaz), em que executivos deixavam para trás as apresentações de slides (na série da Amazon Prime fala-se de powerpoint) por atividades como o paintball, para desenvolver a liderança e o espírito de equipe. Crowley aproveita para substituir a tinta das pistolas por balas de verdade, para desespero de Aziraphale:

“— Há pessoas lá fora atirando umas nas outras!
— Bom, essa é a questão, não é? Estão fazendo isso por conta própria. É o que realmente querem fazer. Eu só as auxiliei. Pense nisso como um microcosmo do universo. Livre-arbítrio para todos. Inefável, não é?” (Posição 1833)

Paralelamente, temos a história de um grupo de meninos conhecidos por Eles, liderado pelo inteligente Adam Young, que mora com seus pais em Tadfield, próximo a uma usina nuclear e também de uma cabana, para onde a ocultista Anathema Device, última descendente da bruxa Agnes Nutter (autora do livro de profecias sobre o fim do mundo), mudara-se recentemente. Além das previsões futuras, que na série envolvem dicas de ações da Apple para os seus parentes, Agnes cultivava hábitos saudáveis do século XXI, o que era visto com estranheza por todos, como o fato de ela correr sem ter ninguém atrás dela:

“Ela advogava o hábito de correr numa espécie de trote suave como um meio de prolongar a vida, o que era extremamente suspeito e colocou pela primeira vez os caçadores de bruxas em seu encalço, e ressaltava a importância das fibras na dieta, embora nesse ponto ela estivesse obviamente à frente de seu tempo, já que a maior parte das pessoas estava mais preocupada com o cascalho em sua dieta. E ela não curava verrugas”. (Posição 3664)

Há ainda os caçadores de bruxas Shadwell e Newton Pulsifer, e os cavaleiros do apocalipse, que agora pilotavam motocicletas: Morte, Fome, Guerra e Poluição (substituta da Peste). De maneira sutil e às vezes direta, Gaiman ironiza várias questões que envolvem o mundo desde a criação aos tempos modernos (trânsito como obra do demônio ou um alimento dietético produzido pela Fome). Por mais que seja uma fantasia, que envolva humor, não há como não se pensar na maneira como estamos vivendo.

A série é bem fiel ao livro. Como roteirista, Gaiman dividiu a história em seis episódios e para cumprir sua promessa a Terry Pratchett (falecido em 2015) de adaptá-la para a televisão mantendo o que eles consideravam essencial, assumiu também a posição de produtor. De acordo com uma entrevista do autor, foram feitas poucas mudanças para ajustá-la aos dias atuais, o que para ele é triste, pois significa que a humanidade evoluira pouco desde os anos 90, e questões como o desmatamento da Amazônia e a caça às baleias não só permanecem, como ficaram mais urgentes. Veja o trailer da série:

Como em outras obras de Gaiman, a música é quase um personagem. Nesse caso, no toca-fitas de Crowley (cd se considerarmos a série), o que mais toca é Queen, especialmente “Bohemian Rapsody”, com trechos da letra incluídos no livro: “Beelzebub has a devil put aside for me! For me! For me!” (Belzebu tem um demônio reservado para mim! Para mim! Para mim!). Incluí em uma playlist esta e outras músicas citadas no livro.

Belas maldições

Belas maldições: As justas e precisas profecias de Agnes Nutter, bruxa
Good omens
Neil Gaiman and Terry Pratchett
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil
350 páginas – E-book

A beleza da descoberta pela primeira vez

Se quando criança apenas sentimos o entusiamo ao descobrir algo pela primeira vez, na maturidade podemos perceber a beleza desse momento. É assim que o escritor português Valter Hugo Mãe, em Contos de cães e maus lobos, encanta leitores de qualquer idade.

São 11 histórias centradas nas crianças e em suas descobertas acerca de limites, das diferenças, do amor, das injustiças e do mundo. O livro possui uma atmosfera de sonhos e contos de fadas por conta da própria subversão da realidade que o autor faz ao imaginar um mundo diferente, ideal e cheio de magia. Ao mesmo tempo, se as palavras do autor remetem os adultos ao passado, logo os traz de volta, fazendo com que reflitam sobre moralidade, preconceitos e insensatez.

O conto que abre a obra “A menina que carregava bocadinhos” alude aos clássicos Branca de Neve e Cinderela. Aqui uma garota de 9 anos aceita trabalhar em busca de um abrigo e de um prato de sopa.  Como um conto de fadas atual, porém, a madrasta é substituída pela figura da patroa, os animais fantásticos por cães que ela mesma cuida e não há fada madrinha. Quando ganha um lenço rasgado da patroa, a menina (já com 15 anos), usa as suas talentosas mãos para transformá-lo em uma roupa que a deixa ainda mais bela e acaba por despertar a ira da dona da casa:

“Ser bonita estava absolutamente fora das suas competências. Não eram modos para uma criada, e não se fazia festa na missa de domingo. Estava obrigada a ter decoro, a ser discreta. Estava obrigada a ser ninguém. Como se a beleza ou a felicidade fossem indecorosas”. (p.19)

Ao ver que estava impedida de ser mais do que era projetado para ela nesse ambiente opressivo, a garota aceita sua condição e passa os dias em sua nova tarefa no jardim, que a mantinha sempre suja de terra. Mas a chegada de um rapaz, fará com que ela conheça o amor e sonhe com uma vida melhor.

Em “A princesa com alma de galinha” é a filha do rei que não aceita o papel designado para ela. Seu desejo é ser enfermeira para cuidar de todos, o que é visto tanto pelo pai quanto pelo povo como loucura e burrice. Segundo eles, uma princesa não deveria querer ser uma normal, mas aproveitar sua distinção e se preparar para governar o reino. Em uma de suas tentativas de alterar essa condição, a princesa encontra ovinhos de passarinhos e decide chocá-los:

“A princesa colocou os sete ovinhos numa toalha seca e inclinou sobre ela um candeeiro forte. Não sabia ser uma mãe pássaro, mas esperava que pudesse enganar a natureza só um bocadinho. Ninguém o haveria de saber. Se descobrissem que cuidava de chocar os ovos iam dizer que queria ser uma galinha. Sorriu. Podia ser que tivesse alma de galinha. A diferença entre as enfermeiras e as galinhas, no entanto, era muito grande. Só os preconceitos podiam considerar algo igual. De todo o modo, a princesa acreditava ter a alma de todas as pessoas do mundo, racionais e irracionais”. (p.44)

O livro traz ainda uma releitura de Chapeuzinho Vermelho em “O mau lobo”; um conto protagonizado por dois casais de velhos (o único que não pertence ao tema da infância); “O menino de água” com a triste história de uma mãe que vê seu filho engolido pelo mar, e que Valter cita nas Notas do autor como um alerta para que os adultos vejam que seus erros podem afetar crianças de forma trágica, e “Nossa Senhora de Vila do Conde”, o conto inédito escrito para esta edição brasileira. Contos de cães e maus lobos foi publicado originalmente em Portugal no ano de 2015. Entretanto, no lugar de “Nossa Senhora de Vila do Conde” havia “As mais belas coisas do mundo”, que no Brasil foi publicado separadamente com o mesmo título, em 2019.

Os contos “Querido monstro”, “O rapaz que habitava os livros” e “Bibliotecas” têm na leitura seu tema principal. Mais do que um companheiro para aqueles que se sentem apartados do mundo e solitários, os livros se apresentam com o poder de abrir mentes, ensinar o belo e recuperar a esperança levando as pessoas a mudar a si mesmas e a realidade.

Diante de tudo isso, é difícil não ser tocado pela narrativa poética e incisiva de Valter Hugo Mãe. E, como em qualquer livro de contos, há sempre um favorito. O meu é “O rosto”, em que uma família vive no alto de um monte a observar o longe.  Só quando o filho passa a frequentar a escola é que ele entende o trabalho dele e dos pais, mas também descobre que há distâncias maiores do que aquelas que ele via. De acordo com a professora, o rosto de cada um tinha distâncias infinitas que deveriam ser percorridas. Não demora para que ele perceba que ver verdadeiramente uma pessoa requer muito esforço:

“O rosto é mais turvo do que os céus e pode ser muito mais complexo do que saber exactamente de quem é um rebanho e se cresceu ou diminuiu. O rosto começa onde se vê e vai até onde já não há luz nem som. Por isso, por mais que observemos, ainda muita coisa nos há-de-escapar e o importante é que estejamos tão atentos quanto possível para nos conhecermos uns aos outros”. (p.56)

Falta de atenção dos pais, drama dos refugiados (que resultou no afogamento do garoto sírio em 2015), trabalho infantil e o conflito do indivíduo para achar seu lugar no mundo são questões para as quais o autor chama a nossa atenção. E assim, prova que “os contos, de pequenos não têm nada. Se os soubermos entender, crescemos também, até nos tornarmos monumentais pessoas. (…) Devemos sempre lembrar que ler é esperar por melhor”.

Contos de cães e maus lobos

 

Contos de cães e maus lobos
Valter Hugo Mãe
Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2018.
96 páginas
(Trechos seguem a grafia do texto original português)