Em algum lugar há alguém igual a você

Já pensou nessa possibilidade? A ideia, por mais fantástica e perturbadora, é mais comum do que você imagina. De Edgar Allan Poe (“Willian Wilson”) a E.T.A. Hoffmann (“O quebra-nozes e o rei dos camundongos”), doppelgängers ou duplos são temas constantes na literatura, no cinema e na cultura pop em geral. Duas obras de grandes escritores falam sobre esse encontro entre iguais. Em inglês, elas têm ainda a mesma denominação The double, mas no original português e na tradução do russo, receberam, respectivamente, os títulos: O homem duplicado de José Saramago e O duplo de Fiódor Dostoiévski.

De acordo com o tradutor Paulo Bezerra no posfácio da edição da Editora 34, O duplo pode ser considerado como o laboratório dos grandes romances de Dostoiévski, por apresentar o tema da duplicidade e do desdobramento da personalidade que aparecerá posteriormente em Crime e castigo; O idiota e Os irmãos Karamázov.

A história começa com o que promete ser um grande dia na vida de Yákov Pietróvitch Golyádkin. De posse de um maço de dinheiro que ele considera “formidável”, vestido em traje de festa e em uma carruagem alugada, Golyádkin percorre as ruas de São Petersburgo. Sua primeira parada, decidida por impulso, é no consultório de seu médico Crestian Ivánovitch. Sob o pretexto de dizer ao doutor algo muitíssimo interessante, o que se segue é uma conversa confusa, na qual sabemos que Yákov deve continuar o tratamento (não sabemos qual). Após uma série de atitudes descabidas durante o dia, ele finalmente chega ao seu destino: o jantar na casa de seu antigo benfeitor Olsufi Ivánovitch. Descobrimos, porém, que ele não só não fora convidado para o evento, como fora impedido de entrar. Depois de mais alguns momentos constrangedores, Golyádkin retorna para casa caminhando e é quando vê pela primeira vez o seu duplo:

“O senhor Golyádkin reconhecera por completo seu amigo noturno. O amigo noturno não era senão ele mesmo – o próprio senhor Golyádkin, outro senhor Golyádkin, mas absolutamente igual a ele – , era, em suma, aquilo que se chama o seu duplo, em todos os sentidos…” (p.74)

No dia seguinte, de volta à sua realidade solitária e sem brilho, Golyádkin, o simples funcionário público chega ao trabalho e é surpreendido ao ver que o novo contratado é a mesma figura da noite anterior:

“…não, era outro senhor Golyádkin, totalmente outro, mas ao mesmo tempo  idêntico ao primeiro – da mesma altura, da mesma compleição, vestido do mesmo jeito, com a mesma calvície – , numa palavra, nada, nada vezes nada faltando para que a semelhança fosse completa, de tal forma que se os pegassem e os colocassem lado a lado, ninguém, decididamente ninguém se atreveria a definir quem era mesmo o Golyádkin de verdade e quem era o falsificado, quem era o velho e quem era o novo, quem era o original e quem era a cópia”. (p.82)

Golyádkin se vê confuso sem saber se as pessoas enxergam a semelhança entre eles, que além da mesma fisionomia, atendem pelo mesmo nome. A partir daí, parece ter início uma disputa de identidade entre o Golyádkin primeiro, o ser reservado com dificuldades de relacionamento, e o Golyádkin segundo, mais solto e popular. A identidade roubada pelo segundo não deixa de apresentar certa comicidade em alguns momentos, mas ao mesmo tempo nos faz sentir a angústia e o desespero do primeiro:

“… e de repente, sem quê nem pra quê, tornava a aparecer, na feição do senhor Golyádkin segundo, aquela pessoa conhecida por suas más intenções e suas motivações atrozes, e ato contínuo, imediatamente, num piscar de olhos o senhor Golyádkin segundo destruía com seu simples aparecimento todo o triunfo e toda a glória do senhor Golyádkin primeiro, obnubilava com sua presença o senhor Golyádkin primeiro, pisoteava na lama o senhor Golyádkin primeiro e, por fim, demonstrava claramente que Golyádkin primeiro era ao mesmo tempo autêntico e absolutamente inautêntico, falsificado, que ele é que era o autêntico e, por último, Golyádkin primeiro não era nada daquilo que aparentava, porém isso e mais aquilo, e, por conseguinte, não podia nem tinha o direito de pertencer a uma sociedade de pessoas bem-intencionadas e de bom-tom.” (p.155)

A linguagem de O duplo é construída para ressaltar a ambiguidade e o desconcerto presentes no enredo. De forma inteligente, Dostoiévski faz uso do discurso indireto livre, da polifonia, da repetição e da descontinuidade à medida que a história avança, juntamente com a falta de discernimento e clareza de Golyádkin. Além disso, pensamentos, sentimentos, sonhos e ações se misturam, aumentando a sensação de desorientação do personagem (e por vezes do leitor) até chegar ao final intrigante.

Por razões diferentes, a leitura de O homem duplicado (do meu desafio literário) também requer atenção redobrada. Para quem não está acostumado com o estilo de Saramago, os grandes blocos de texto, a ausência de parágrafos e os diálogos sinalizados apenas por vírgulas e inicias maiúsculas causam um certo desconforto a princípio. Mas ao longo do livro a leitura vai ganhando fluidez.

A trama do autor vencedor do Nobel tem como personagem principal Tertuliano Máximo Afonso.  Um professor de História do ensino secundário, divorciado há seis anos, que vive sozinho e tem um relacionamento morno com Maria da Paz. Como ele está passando por uma fase depressiva, um colega (professor de Matemática) sugere-lhe que assista a um filme – uma comédia leve chamada “Quem porfia mata caça” – para se distrair. Mas ao ver o filme, o professor depara-se em uma das cenas com um ator idêntico a ele:

“Tinha regressado à primeira imagem, aquela em que o empregado da recepção, num grande plano, fita a direito Inês de Castro, e analisava, minucioso, a imagem, traço por traço, feição por feição, Tirando umas leves diferenças, pensou, o bigode sobretudo, o cabelo de corte diferente, a cara menos cheia, é igual a mim. Sentia-se tranquilo agora, sem dúvida a semelhança era, por assim dizer, assombrosa, mas daí não passava, semelhanças é o que não falta no mundo, vejam-se os gémeos, por exemplo, o que seria para admirar é que havendo mais de seis mil milhões de pessoas no planeta não se encontrassem ao menos duas iguais. Que nunca poderiam ser exactamente iguais, iguais em tudo, já se sabe, disse, como se estivesse a conversar com aquele quase seu outro eu que o olhava de dentro do aparelho de televisão.” (p.21)

O enredo concentra-se na busca para saber quem é o outro. Primeiro, o professor querendo encontrar o ator e depois, o ator querendo saber sobre a vida de Tertuliano. Por ser uma obra de Saramago, a condição humana é tema recorrente, mas desta vez, ela encontra-se mais diluída, no que parece ser um thriller com suspense, mistério, ação e um desfecho impactante. Ainda assim, há vários momentos em que a questão da identidade ou da sua perda é discutida:

“Vai-lhe acontecer o mesmo que a mim, de cada vez que se olhar num espelho nunca terá a certeza de que se o que o está vendo é sua imagem virtual, ou a minha imagem real, Começo a pensar que tenho estado a falar com um louco, Lembre-se da cicatriz, se eu estivesse louco, o mais provável é que o estivéssemos ambos.” (p.158)

Além do tema, as duas obras têm outras semelhanças: narrador participativo que fala com o leitor; personagens falando consigo mesmo (no caso de Saramago ele insere o senso comum para dialogar com Tertuliano) e, por fim, ambas deram origem a filmes com os mesmos nomes das obras. Mas cabe lembrar que, apesar de terem sido baseadas nos livros, os filmes apresentam histórias diferentes que levam a conclusões diferentes. Recomendo especialmente o filme de Dennis Villeneuve.

Apesar do distanciamento no espaço e no tempo que separam as duas publicações, ambas propõem uma reflexão que permanece atual: o que nos define como indivíduo? Aparência? Nome? Profissão? Comportamento? Quais papéis sociais representamos? Somos realmente únicos? Neste mundo globalizado, populoso e no qual somos identificados cada vez mais por números são perguntas realmente válidas.

O duplo (The Double) de 2013
Diretor: Richard Ayoade

O homem duplicado (Enemy) de 2013
Diretor: Dennis Villeneuve

O duplo

O duplo
Dvoinik
Fiódor Dostoiévski
São Paulo: Editora 34, 2013
234 páginas

O homem duplicado

O homem duplicado
José Saramago
São Paulo: Companhia das Letras, 2008
284 páginas

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