Umberto Eco oferece o que cada leitor procura

Não é qualquer escritor que consegue a proeza de agradar, ao mesmo tempo, o leitor que busca saber apenas como o enredo termina, e o leitor que quer entender como aquilo que acontece foi narrado. O italiano Umberto Eco provou que isso é possível em seu primeiro romance, O nome da rosa. Publicado em 1980, o livro foi aclamado pela crítica e também se tornou um best-seller, ganhando traduções para diversos idiomas e uma adaptação para o cinema em 1986, com Sean Connery no papel principal.

A história começa como um romance policial, com um mistério envolvendo monges assassinados em uma abadia de algum lugar da Itália. No entanto, há outras camadas ao longo da narrativa. Eco, formado em Literatura e Filosofia Medieval, além de ser um renomado professor de Semiótica, fez com que a obra ganhasse um aprofundamento tanto do ponto de vista histórico/filosófico quanto linguístico.

O autor escolheu contar a história por meio de um vivente da época, no caso, um dos protagonistas, o noviço beneditino Adso. Aliás, é de um convento em Melk, quando já está com 80 anos, que Adso escreve seu manuscrito, contando o que ocorrera naqueles sete dias de novembro de 1327 – quando ele tinha 18 anos –, em uma abadia da qual ele julgou prudente não revelar o nome.

No entanto, Eco aproveita-se da ideia de que “os livros falam sempre de outros livros, e cada história conta uma história já contada” para criar escalas na narração, na qual Adso é o primeiro narrador – que escreve no final do século XIV. O manuscrito de Adso será encontrado no século XVII, servindo de base para o texto de Mabillon, que por sua vez sustentará o livro do abade Vallet, de 1842, que chegará finalmente a Eco, que nos conta a história em 1980.

Adso de Melk é discípulo e escriba do frei Guilherme de Baskerville (se veio à sua mente o famoso personagem de Conan Doyle, não é mero acaso) e vai ajudar o frei em sua dupla missão: desvendar o mistério que envolve a abadia e cuidar de um encontro que reunirá dois lados opostos da Igreja, os franciscanos e o alto clero ligado ao papa.

Na verdade, essa cisão era muito mais complexa. De um lado estava o imperador Ludovico, excomungado pelo papa, que queria trazer de volta a Roma a sede apostólica. Do outro estava o papa João XXII, acusado de herege, que estava em Avignon desde que o papa anterior, Clemente V, mudara a sede apostólica para a França. Enquanto os franciscanos estavam do lado do imperador e defendiam a pobreza de Cristo, o clero queria justificar seu poder e riqueza apoiando o papa. Eco introduz personagens reais como Miguel de Cesena, Ubertino de Casale e Bernardo Gui para explicar como se davam os posicionamentos e a disputa de poder na época.

Voltando ao enredo, o abade Abão pede ao frei de origem inglesa, conhecido por sua mente brilhante, para descobrir quem foi o responsável pela morte do miniaturista, Adelmo de Otranto. Ao longo da semana, porém, outros assassinatos ocorrem, seguindo uma ordem que remete às trombetas do Apocalipse. Durante a investigação, Guilherme percebe que a abadia é envolta por muitos segredos, entre os quais a relação dos monges com mulheres da cidade e entre eles mesmos.

A biblioteca da abadia, considerada a maior da cristandade, também esconde mistérios e é nela que se concentra toda a ação. Construída como se fosse um labirinto, a biblioteca só é acessada por três pessoas: o abade, o bibliotecário Malaquias e o seu assistente, Berengário, que a protegem de tudo e de todos. Na justificativa do abade:

“Se por séculos e séculos todos tivessem podido tocar livremente os nossos códices, a maior parte deles já não existiria. O bibliotecário, portanto, defende-os não só dos homens, mas também da natureza, e dedica a vida a essa guerra contra as forças do esquecimento, inimigo da verdade.
– Quer dizer que ninguém, salvo duas pessoas, entra no último andar do Edifício…
O abade sorriu:
– Ninguém deve. Ninguém pode. Ninguém, querendo, conseguiria. A biblioteca defende-se sozinha, insondável como a verdade que abriga, enganadora como a mentira que guarda. Labirinto espiritual, é também labirinto terreno. Poderíeis entrar e poderíeis não sair. E, dito isto, quisera que vos adequásseis às regras da abadia”. (p. 71)

Mesmo assim, Guilherme e Adso conseguem entrar na biblioteca e vão aos poucos desvendando os inúmeros símbolos marcados em suas paredes. A semiótica ganha espaço na elucidação, da qual Eco utiliza-se para apontar alguns exemplos de índices (as marcas pretas nos dedos das vítimas), signos (a frase-chave escrita na parede), simulacros (as profecias do Apocalipse), fazendo com que o leitor, incitado pelas palavras de Guilherme, reflita sobre a própria construção linguística:

“Nem sempre uma marca tem a mesma forma do corpo que a imprimiu e nem sempre nasce da pressão de um corpo. Às vezes reproduz a impressão que um corpo deixou em nossa mente, é a marca impressa de uma ideia. A ideia é signo das coisas, e a imagem é signo da ideia, signo de um signo. Mas da imagem, se não reconstruo o corpo, reconstruo a ideia que outrem tinha dela”. (p. 354)

Da mesma forma, acompanhando as discussões entre Guilherme, Adso e outros monges, o leitor se vê diante de várias questões filosóficas, que tratam desde o riso, a verdade, o amor, a luxúria, passando pela visão da mulher como “vaso do demônio”, até as ideias de Roger Bacon (de quem Guilherme é fã, mencionando-o diversas vezes), Aristóteles, São Francisco de Assis, Ockham e São Tomás de Aquino. Mas em meio a tantos temas abordados, há um que se destaca: livros. Eco justifica a importância dos livros ao mesmo tempo em que põe em dúvida o que ele revela:

“Os livros não são feitos para acreditarmos neles, mas para serem submetidos a investigações. Diante de um livro não devemos nos perguntar o que diz, mas o que quer dizer, ideia que para os velhos comentadores dos livros sagrados foi claríssima”. (p. 353)

Esta edição que eu li de O nome da rosa, além da tradução da maior parte dos termos em latim, traz o pós-escrito de 1983, que também pode ser encontrado avulso. Recomendo sua leitura, não porque fará uma interpretação do romance – afinal Eco defende que se o fizesse, não haveria porque escrevê-lo, uma vez que é função da obra gerar interpretações –, mas porque nele o autor revela o seu processo de produção. Segundo ele, sua motivação para escrever o livro veio de uma ideia: “a vontade de envenenar um monge”.

Lendo o pós-escrito, percebemos a maestria com que a narrativa foi desenvolvida por Eco. De estudos de métodos de envenenamento à leitura dos cronistas medievais – com o intuito de saber a maneira como eles contavam uma história para que, ao lermos, realmente nos parecesse um texto produzido na Idade Média e não somente um texto sobre ela –, cada detalhe é pensado. Só a construção do labirinto levou três meses, afirmou o autor. Em uma entrevista, ele revelou que escreveu o romance em dois anos, mas se fosse contar o tempo de pesquisa, foram mais de 30 anos.

Eco não subestima seu leitor, só dá o caminho, mesmo que labiríntico, para chegar a uma interpretação:

“O bem de um livro está em ser lido. Um livro é feito de signos que falam de outros signos que, por sua vez, falam das coisas. Sem um olho que o leia, um livro traz signos que não produzem conceitos, portanto é mudo.”. (p. 433)

Para os leitores que se prenderam mais à trama policial, Umberto Eco mantém até final o suspense, e entrega um desfecho impressionante. Para aqueles que se viram envolvidos com todas as discussões, a leitura trará muitos questionamentos sobre as diversas faces da verdade, o que o homem está disposto a fazer para fazer prevalecer sua verdade, o saber como sinônimo de poder, o significado mutável dos signos. Quer dizer, esses foram alguns questionamentos surgidos para mim durante a minha leitura, mas com a profusão de assuntos discutidos na obra, certamente haverá leituras diferentes por parte de outros leitores. Qual é a sua leitura?


O nome da rosa
Il nome della rosa
Umberto Eco
Rio de Janeiro: Record, 2018.
Tradução: Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade.
590 páginas

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