Muito antes da onda true crime

Popularizadas como true crime, as histórias envolvendo crimes que aconteceram de verdade (como indica o próprio nome em inglês) saíram de seu território usual, os jornais, para adentrar séries, filmes, podcasts e livros, no último ano. Mas o interesse pelo tema não é novidade. No dia 15 de novembro de 1959, o assassinato de quatro membros da família Clutter, que vivia em uma fazenda no Kansas, inspirou uma das mais conhecidas obras do século 20, A sangue frio.

Publicado sete anos após o trágico evento, em 1966*, o livro alçou seu autor, Truman Capote – que já era conhecido por Bonequinha de Luxo, cuja adaptação se tornou um clássico protagonizado por Audrey Hepburn – ao panteão dos grandes escritores, dando início, aliás, à corrente que ficou conhecida como new journalism.

Esse novo jornalismo tinha como intuito tornar a notícia mais envolvente para seus leitores, mantendo o compromisso com a verdade por meio dos métodos jornalísticos de entrevistas e apuração dos fatos, mas deixando de lado a rigidez de seus manuais de redação em prol da utilização de técnicas literárias para a construção do texto. Outras características marcantes eram o aprofundamento das personagens envolvidas, o uso intenso de diálogos, as descrições detalhadas tanto do cenário quanto das pessoas e a inserção do jornalista na história, como uma testemunha ocular, capaz de conferir mais veracidade a tudo o que estava sendo dito.

Capote já havia experimentado o estilo em um perfil do ator Marlon Brando para a revista The New Yorker, mas foi com A sangue frio, a qual ele se referia como um romance de não ficção, que o new journalism se consolidou.  Na época, críticas ao novo estilo não faltaram, inclusive de Brando, assim que a entrevista foi publicada. E permaneceram, como mostra o jornalista Matinas Suzuki Jr. no posfácio do livro, mas aqui vou me ater à história.

Nada de cena do crime nas primeiras linhas, ela só aparecerá na segunda metade do livro. O autor, ao contrário do que seria uma tradicional matéria jornalística, começa a narrativa descrevendo a pacata cidade de Holcomb, no Kansas, que até aquele fatídico evento era desconhecida da maioria das pessoas. Ele apresenta cada membro da família assassinada – Herbert Clutter, sua esposa Bonnie, a filha Nancy de 16 anos e o filho Kenyon, de 15 – e, paralelamente, os ex-presidiários, Perry Smith e Dick Hickcock, que se encontravam a milhas de distância de Holcomb. Entrecortando o relato dos momentos que antecederam aquele 15 de novembro, Capote conta mais sobre a rica família, praticamente um modelo de virtude para a comunidade, e ainda expõe o difícil passado dos criminosos, sobretudo o de Perry, abandonado pela mãe, explorado pelo pai e complexado por sua aparência física:

“Sentado, dava a impressão de ser um homem forte, maior que o normal, com os ombros, os braços e o tronco largos e modelados de halterofilista – e o seu hobby era de fato o levantamento de peso. Mas algumas partes de seu corpo não estavam em proporção com as demais. Seus pés pequenos, enfiados em botinas pretas com fivelas de metal, poderiam caber nas delicadas sapatilhas de uma bailarina; quando se pôs de pé, revelou que sua altura não era maior que a de um menino de doze anos, e agora, atarracado sobre as pernas tortas que pareciam grotescas de tão inadequadas para o tronco crescido que sustentavam, não lembrava mais um corpulento motorista de caminhão e sim um jóquei aposentado, desenvolvido além da conta e cheio de músculos”. (p. 36)

Ao longo das páginas, somos transportados para Holcomb, familiarizando-nos com cada um de seus personagens e acompanhando o andamento das investigações, assim como as mudanças no comportamento dos moradores da cidade:

“’Tem gente que diz que sou uma velha durona, mas o caso dos Clutter me deixou sem saber o que fazer’, diria ela [Bess Hartman] mais tarde a uma amiga. ‘Imagine só, alguém fazer uma barbaridade daquelas! Quando eu soube, e as pessoas começaram a entrar aqui contando as coisas mais assustadoras, eu só pensava em Bonnie. É claro, era bobagem minha, mas ninguém sabia o que tinha acontecido, e muita gente achava que talvez… por causa daquelas crises dela. Agora, ninguém mais sabe o que pensar. Deve ter sido vingança. De alguém que conhecia a casa perfeitamente. Mas quem detestava a família Clutter? Nunca ouvi ninguém dizer nada contra eles; não existia família mais querida, e se uma coisa acontece logo com eles, quem pode se sentir em segurança?’” (p. 102)

Capote faz mais do que nos tornar participantes da trama, ele desperta em nós um sentimento de compaixão pelos criminosos, especialmente por Perry, por meio de uma narrativa envolvente, uma descrição minuciosa e um aprofundamento psicológico dos assassinos, permitindo que de alguma forma os atos deles se tornem compreensíveis. Como por exemplo, na confissão de Perry:

“‘Eu não queria fazer mal àquele homem. Achei que era um senhor simpático. Que falava manso. E era assim que eu pensava até a hora em que cortei o pescoço dele’. E conversando com Donald Cullivan, Smith disse: ‘[Os Clutter] não me fizeram mal nenhum. Ao contrário de outras pessoas. Ao contrário de tanta gente que me fez mal a vida inteira. Mas talvez os Clutter estivessem destinados a pagar por tudo'”. (p. 373)

O livro levanta várias polêmicas, tanto inerentes à trama, entre as quais, as falhas do sistema judiciário, a pena de morte e a ilusão do sonho americano para certas camadas da sociedade; quanto externas, principalmente ligadas ao autor, acusado de inventar diálogos e situações, além de favorecer a figura de Perry, deixando de lado as próprias vítimas. E se Capote não se incluiu na história, fazendo apenas uma menção a ele como o jornalista, na terceira pessoa, dizem que ele foi responsável por várias implicações durante o julgamento.

Nada disso, porém, tira a importância do trabalho realizado por Capote. Durante um ano e meio, ele, com a ajuda da amiga Harper Lee, conhecida como a autora de outra obra clássica, O sol é para todos, entrevistou as pessoas da cidade e os assassinos, chegando a ter permissão para conversar com eles até no corredor da morte. Muito do processo de realização do livro aparece no filme Capote, de 2005, que deu a Philip Seymour Hoffman o Oscar de melhor ator por sua interpretação de Truman Capote.

Esta é a segunda vez que leio este livro, após um hiato de mais de 10 anos. O que posso dizer é que o suspense, a fluidez e a qualidade da narrativa fizeram com que o meu interesse permanecesse igual ao da primeira vez que eu o li.

* Só uma observação, A sangue frio foi publicado primeiro na consagrada revista The New Yorker, em 1965, e no ano seguinte virou livro.

A sangue frio – relato verdadeiro de um homicídio múltiplo e suas consequências
In cold blood – A true account of a multiple murder and its consequences
Truman Capote
São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Tradução de Sergio Flaksman
432 páginas

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